Com motim ou sem motim, a oposição vai ganhando músculo na Venezuela

Grupo liderado por um ex-capitão ataca quartel e leva armas. Governo diz que são "mercenários civis pagos pela extrema-direita", ao mesmo tempo que a oposição diz que vai dialogar com "chavistas desiludidos".

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Luisa Ortega Díaz, a procuradora demitida por Maduro, participou num encontro com a oposição Ueslei Marcelino/REUTERS

É um caminho já percorrido várias vezes, por muitos governos e em muitos países: à medida que o Governo da Venezuela vai reforçando o seu poder interno através de um maior controlo dos tribunais e das leis, os grupos da oposição vão aproveitando as pressões e os recados enviados do estrangeiro para ganharem mais corpo.

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É um caminho já percorrido várias vezes, por muitos governos e em muitos países: à medida que o Governo da Venezuela vai reforçando o seu poder interno através de um maior controlo dos tribunais e das leis, os grupos da oposição vão aproveitando as pressões e os recados enviados do estrangeiro para ganharem mais corpo.

Nos últimos dias, essa marcha de venezuelanos por dois caminhos distintos tornou-se mais evidente: depois de a nova Assembleia Constituinte ter afastado a procuradora-geral Luisa Ortega Díaz – talvez a única crítica de Maduro que ainda tinha algum poder a nível nacional –, a União Europeia disse que decisões como essa não ajudam a resolver os problemas do país e começaram a surgir notícias de que os Estados Unidos admitem impor sanções à importação de petróleo venezuelano.

Encorajados por esta maior pressão externa – que tem reflexos na força da oposição interna –, 20 homens tomaram de assalto um quartel no Norte do país, na madrugada de domingo, e roubaram armamento. O Governo de Nicolás Maduro capturou muitos deles, chamou-lhes terroristas e disse que foram pagos "pela extrema-direita venezuelana e por governos estrangeiros", mas ficou dado o alerta: não só foi lançado um apelo público a ataques armados contra esquadras e quartéis, como a manta de retalhos que é a oposição, da direita ultraliberal ao centro-esquerda, diz agora que está pronta a negociar com "chavistas desiludidos".

No cenário actual, é quase tão importante avaliar o que se vai dizendo em sítios como a Casa Branca – mesmo que seja sob anonimato – como tentar perceber o que está a acontecer no terreno. Muitas vezes, a protecção e o apoio que algumas palavras transportam podem levar civis e militares a mudarem o seu comportamento, indo da defesa do Governo para o outro lado de um momento para o outro.

Falar com os desiludidos

Por outras palavras, importa saber se um dos líderes da oposição, Henrique Capriles, está mesmo a ponto de se sentar à mesa de negociações com apoiantes de Hugo Chávez que se sentem desiludidos com Nicolás Maduro, mas é também importante perceber que só o facto de isso ter sido noticiado pelo Wall Street Journal, esta segunda-feira, já tem algum peso para se antecipar as próximas semanas na Venezuela.

"Eles defendem Chávez e nós não. Mas, mesmo assim, podemos sentar-nos e conversar", disse ao jornal norte-americano o homem que concorreu nas últimas duas eleições presidenciais em representação dos opositores do Governo venezuelano. O jornal cita "políticos próximos" de Capriles, e diz que a reunião estava marcada para domingo, com a mediação da Igreja Católica. Para além de um grupo de pessoas desiludidas com o rumo que a revolução chavista tomou sob as ordens de Maduro, Capriles fez saber que está também interessado em dialogar com Luisa Ortega Díaz – a procuradora-geral que foi afastada logo na primeira vez que a nova Assembleia Constituinte tomou uma decisão, no sábado.

Através do espanhol El País, no domingo, chegou a notícia de que há um grupo de conselheiros na Casa Branca que defende o reforço das sanções impostas à Venezuela – depois das que foram aplicadas a Maduro e a outros 13 dirigentes, estaria na hora de cortar a importação de crude venezuelano. É uma sugestão pouco credível nesta altura – os Estados Unidos são o principal comprador de crude venezuelano, e um embargo semelhante ao que foi imposto ao Irão poderia ditar a miséria na Venezuela e obrigaria a Casa Branca a procurar alternativas para substituir 10% das suas importações.

Para o analista Dany Bahar, da norte-americana Brookings Institution, os EUA fariam melhor se aplicassem sanções "aos generais mais próximos [de Maduro], para que as chefias intermédias saibam que também podem ser atingidas pelas sanções, se não se pronunciarem a favor da Constituição".

"Rebeldes" ou "terroristas"?

Apesar de o Governo venezuelano assegurar que a oposição não tem força nem legitimidade para o derrubar, e de o chefe máximo dos militares garantir que as armas estão do lado de Maduro, é também evidente que há hoje mais hipóteses de as forças opositoras se unirem com mais solidez à volta de um objectivo comum, ainda que possa ser temporário: a saída do poder de Nicolás Maduro e do seu Partido Socialista Unido da Venezuela.

Joaquín Villalobos, antigo guerrilheiro e político salvadorenho, fundador do grupo armado de esquerda Exército Revolucionário do Povo, diz num artigo publicado no El País que a Venezuela só tem um caminho para evitar um conflito sangrento: "A partir do momento em que os opositores se converteram na maioria [na Assembleia Nacional, depois das eleições de 2015], as possibilidades de estabilidade na Venezuela giram em torno da necessidade de se dar garantias ao partido chavista para que se converta em oposição, e à oposição para que possa chegar ao Governo. Este é o ponto central do problema, e é disto que se deve falar se se quiser uma saída negociada séria."

Pelo menos por agora, não é esse o caminho que se vislumbra na Venezuela. Na madrugada de domingo, 20 homens liderados por um ex-capitão da Guarda Nacional Bolivariana atacaram um dos principais quartéis da Venezuela, em Valencia. As forças armadas puseram fim ao assalto em poucas horas, e a imagem de sete homens capturados foi exibida como um troféu pelo Governo – para além dos sete capturados, durante a troca de tiros foram mortos dois assaltantes e um ficou ferido. Outros dez continuavam em fuga esta segunda-feira, transportando com eles algum material militar roubado do quartel.

Tal como o que acontece com as notícias sobre um possível reforço das sanções norte-americanas ou reuniões entre opositores de direita e chavistas desiludidos, neste caso interessa também reter a ideia e não só a acção concreta. Um obscuro ex-capitão da Guarda Nacional Bolivariana, que diz ter sido afastado em 2014 por criticar o Governo, lançou o ataque ao quartel de Valencia depois de ter divulgado um vídeo em que surge à frente dos outros 19 homens: "Declaramo-nos em legítima rebeldia, unidos hoje mais do que nunca com o corajoso povo da Venezuela, para repudiar a tirania assassina de Nicolás Maduro", disse Juan Caguaripano. O Presidente venezuelano disse que o líder do assalto ao quartel foi capturado e "está a colaborar activamente", mas Caguaripano não aparece na imagem em que surgem sete dos detidos.

O que aconteceu na madrugada de domingo não se resume aos pormenores de um ataque: quer seja uma acção de civis vestidos com uniformes militares, "mercenários pagos pela extrema-direita e por governos estrangeiros", como garante o Governo; quer seja o início de um levantamento mais alargado nas forças armadas, como reclamou Caguaripano, acções deste tipo são sempre más notícias para o Governo de Nicolás Maduro.