O que fica depois da arquitectura efémera?
Os cinco pavilhões construídos no Parque de Serralves inauguram uma nova relação do museu com a arquitectura.
Os cinco pavilhões construídos no Parque de Serralves pelos Depa Architects, Diogo Aguiar Studio, Fala Atelier, Fahr 021.3 e Ottotto constituem o pretexto ideal para nos focarmos na especificidade de uma arquitectura que é efémera, temporária e performativa, por oposição a uma arquitectura que é duradoura, permanente e sólida.
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Os cinco pavilhões construídos no Parque de Serralves pelos Depa Architects, Diogo Aguiar Studio, Fala Atelier, Fahr 021.3 e Ottotto constituem o pretexto ideal para nos focarmos na especificidade de uma arquitectura que é efémera, temporária e performativa, por oposição a uma arquitectura que é duradoura, permanente e sólida.
Enquanto substantivo, a palavra arquitectura não é suficiente para nomear ou qualificar esta prática que muitas vezes se cruza ou confunde com o campo da arte. Daí recorrermos à expressão arquitectura efémera — que acontece quando a arquitectura assume um carácter temporário ou performativo, como uma cenografia, um pavilhão, uma instalação ou um projecto expositivo.
Estes pavilhões são dispositivos espaciais, experiências arquitectónicas que resultam de uma lógica muito própria. O facto de a arquitectura efémera ser temporária possibilita uma maior experimentação espacial e material, com tempos de projecto e execução mais curtos, e uma maior flexibilidade ao nível dos orçamentos e regulamentos.
A arquitectura efémera pode ser também enquadrada no campo da “prática espacial”, uma prática diferente da corrente, normalmente designada de “arquitectura pura e dura”. Em Portugal, ao longo dos últimos anos, a noção de “prática espacial” vem ganhando corpo, história e bibliografia específica. Comecemos pela peça Body in Transit de Didier Fiúza Faustino, um contentor de carga moldado para o transporte de um corpo humano e exposto pela primeira vez na Bienal de Arquitectura de Veneza de 2000 — peça que foi apontada por Jorge Figueira no Jornal Arquitectos (2003) como um objecto que cruza “a componente artística com uma motivação livremente arquitectónica” e descrita por Pedro Gadanho na revista Dédalo (2007) como um projecto que “encarna uma incontornável dimensão performativa”.
Neste contexto, é importante recordarmos também o livro de Pedro Bandeira, Projectos Específicos para um Cliente Genérico (Dafne, 2006), no qual se procurou demonstrar que “o discurso disciplinar da arquitectura é mais amplo do que nos querem fazer parecer e que não pode ficar fechado sobre si próprio, sob pena de perder a percepção do mundo”. Também é pertinente assinalarmos as “experiências arquitectónicas efémeras” dos dois pavilhões para a Bienal de Arquitectura de Veneza, projectados numa dupla arquitecto/artista, como o Lisboscópio, de Pancho Guedes e Ricardo Jacinto (2006), ou o Cá Fora: Arquitectura Desassossegada, de Eduardo Souto Moura e Ângelo de Sousa (2008).
É igualmente importante destacarmos duas revistas de arquitectura. O número da revista A21 editado por Inês Moreira, no qual foi proposto um Mapa de Jovens Práticas Espaciais (2010) em que se apresentaram exemplos de várias práticas possíveis no campo expandido da arquitectura: “A noção de prática é aqui entendida como uma activação, prática como um modo experimental, eventualmente performativo, de conhecimento do espaço.” E o oitavo número da revista Dédalo, com o tema Displace: Deviations on Architectural Practice (2011), publicado no âmbito da organização de um encontro com vários arquitectos que actuam nas margens da arquitectura, onde se afirmava no editorial que “Displace pretende centrar-se nos limites de actuação da prática arquitectónica, nos emergentes deslocamentos em relação ao núcleo que lhes é comum. Sejam descontextualizações, desvios, devaneios… esta rede complexa de vectores que, em permanente movimento, se afastam e aproximam do seu ponto de origem: a arquitectura.”
Devemos ainda recordar Guimarães 2012, Capital Europeia da Cultura, com a realização do concurso internacional de ideias, intitulado Performance Architecture (2012), com curadoria de Pedro Gadanho, através do qual cinco propostas — da autoria de Dantiope, DOSE, Like, IUT e Pedrita Studio com Ricardo Jacinto — “criaram conceitos e estruturas temporárias que pudessem favorecer a apropriação de espaços públicos e a interacção por parte dos habitantes da cidade.” Ou ainda lembrar a terceira edição da Trienal de Arquitectura de Lisboa em 2013, comissariada por Beatrice Galilee, com intervenções de Andrés Jaque, Frida Escobedo, Friendly Fire, Paulo Moreira com Kiluanji Kia Henda, entre outros, onde se pretendeu “proporcionar uma plataforma de debate e apresentar uma proposta alternativa para a compreensão da arquitectura enquanto forma de prática espacial”.
A noção de arquitectura efémera deve assim ser entendida enquanto parte de uma prática espacial mais abrangente, experimental e performativa.
A nível internacional existem duas referências incontornáveis que nos interessa focar: a instalação do MoMA PS1, em Nova Iorque, e o pavilhão da Serpentine Gallery, em Londres. O Museu de Arte Moderna de Nova Iorque e o MoMA PS1 promovem, desde 1998, o concurso anual Young Architects Program. Com o objectivo de convidar arquitectos emergentes a projectarem uma instalação temporária ao ar livre, têm sido apresentados todos os anos propostas que procuram dar resposta à vontade de inovação e originalidade apontadas pelo programa. Em Londres, o Serpentine Pavilion é construído todos os Verões, desde o ano 2000, no relvado junto à Serpentine Gallery, no Hyde Park.
Ao contrário do PS1, os autores dos pavilhões costumam ser arquitectos consagrados, como Zaha Hadid (2000), Toyo Ito (2002), Oscar Niemeyer (2003), Rem Koolhaas (2006), Frank Gehry (2008), Peter Zumthor (2011), Herzog & de Meuron e Ai Weiwei (2012), entre outros. Álvaro Siza e Eduardo Souto Moura foram os arquitectos convidados de 2005, tendo apresentado um pavilhão temporário memorável, num projecto de arquitectura efémera que lhes permitiu arriscar e explorar uma abordagem diferente, com uma linguagem e estratégia construtiva mais experimental.
Os cinco pavilhões temporários, construídos no âmbito do projecto Incerteza Viva: Uma Exposição a partir da 32.ª Bienal de São Paulo, assumem um carácter diferente da Serpentine Gallery ou do PS1. João Ribas, director adjunto do Museu de Arte Contemporânea de Serralves e curador da exposição, pretendeu conjugar arte e arquitectura, expandindo o espaço expositivo do museu para o parque. Não se trata apenas de uma celebração da arquitectura por si só, mas também da resposta à necessidade funcional de projecção dos filmes da bienal brasileira, numa articulação entre a estrutura do pavilhão, o controle da luminosidade e do som e a definição espacial e formal da relação interior/exterior, com a melhor implantação e a escala mais adequada.
A selecção que João Ribas fez dos cinco jovens escritórios de arquitectura do Porto para a construção dos pavilhões temporários (Depa Architects, Diogo Aguiar Studio, Fala Atelier, Fahr 021.3 e Ottotto), contou com o apoio de Nuno Grande, Roberto Cremascoli e Camilo Rebelo, arquitectos que acompanharam informalmente o processo e a implementação do programa. Após a fase inicial de apresentação de propostas, decidiu-se atribuir um pavilhão por escritório, tendo cada projecto um orçamento de 25.000 euros, num modelo chave-na-mão, que incluiu o conjunto dos honorários e das especialidades, bem como a montagem e desmontagem.
João Ribas fez depois corresponder o artista ao pavilhão, relacionando o conteúdo do vídeo projectado com o local de implantação e com a materialidade e espacialidade definidas pelos arquitectos. No confronto com os espaços onde os pavilhões são implantados, ou com as obras dos artistas que acolhem, surgem diálogos inesperados que fornecem outras leituras desses mesmos espaços, e dessas mesmas obras. Estas arquitecturas efémeras funcionam assim como dispositivos que provocam novas relações e novas perspectivas.
Este tipo de dispositivo, associado à arquitectura efémera, acrescenta assim mais um nível de aproximação de Serralves ao campo da arquitectura, complementando a exposição permanente, à escala real, dos edifícios da Casa e do Museu de Arte Contemporânea, e de exposições temporárias, como a que está actualmente em exibição, Splitting, Cutting, Writing, Drawing, Eating... Gordon Matta-Clark, que dão continuidade à parceria de Serralves com o Canadian Centre for Architecture, através da qual já se apresentaram as exposições O Processo SAAL: Arquitectura e participação 1974-1976, em 2015, e o Arquivo de Álvaro Siza Vieira, em 2016.
Este modelo expositivo dos pavilhões no Parque de Serralves inaugura também uma nova relação de Serralves com a arquitectura, fora do modelo clássico da exposição de maquetes, documentos e desenhos. Se a ligação à arquitectura sai reforçada com a encomenda destes cinco pavilhões, a escolha de Serralves constitui ainda um bom pretexto para conhecermos melhor o percurso e o trabalho de uma novíssima geração de arquitectos no Porto.