Uma vida a desfolhar o malmequer. “Mato-me, não me mato...”

A Antígona inicia a publicação da obra do escritor urugaio Eduardo Galeano. São seis livros até ao final de 2018. Depois do canónico de esquerda As Veias Abertas da América Latina, segue-se O Caçador de Histórias, fragmentos de uma vida feita a jogar conversa fora, como quis que fosse.

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Praticou jornalismo, poesia, crónica, escreveu ficção como quem escreve ensaio e vice-versa, mas foi sempre político em toda a sua obra. Rejeitava o epíteto de intelectual Robert Yabeck

"A palavra entusiasmo provém da antiga Grécia e significava ter os deuses dentro", escreveu Eduardo Galeano pouco tempo antes de morrer num texto muito breve a que deu o título Viver por Curiosidade. A frase replica uma ideia nele recorrente que verbalizou num depoimento, em 2011, na praça Catalunya, em Barcelona, durante uma onda de protestos em Espanha. “Há outro mundo possível, que esta na barriga deste”, e acrescentava: “Este mundo de merda está grávido de outro”. Eduardo Galeano, o escritor uruguaio que morreu em 2015 aos 74 anos, acreditava nisso não com a fé nos deuses mas com a crença na humanidade e de olhos no presente, mais do que no futuro. Ainda nesse texto, lê-se: “É muito simples. Não sei, nem quero saber, qual é o futuro que me espera. O melhor sobre o meu futuro é que eu não o conheço.” Este e outros estão entre os últimos pensamentos reunidos no livro O Caçador de Histórias que a Antígona irá lançar no mercado no mês de Setembro. É o título que se segue ao canónico latino-americano As Veias Abertas da América Latina com que a editora iniciou este ano o projecto de publicar em Portugal a obra do homem que se dizia movido pela curiosidade.

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"A palavra entusiasmo provém da antiga Grécia e significava ter os deuses dentro", escreveu Eduardo Galeano pouco tempo antes de morrer num texto muito breve a que deu o título Viver por Curiosidade. A frase replica uma ideia nele recorrente que verbalizou num depoimento, em 2011, na praça Catalunya, em Barcelona, durante uma onda de protestos em Espanha. “Há outro mundo possível, que esta na barriga deste”, e acrescentava: “Este mundo de merda está grávido de outro”. Eduardo Galeano, o escritor uruguaio que morreu em 2015 aos 74 anos, acreditava nisso não com a fé nos deuses mas com a crença na humanidade e de olhos no presente, mais do que no futuro. Ainda nesse texto, lê-se: “É muito simples. Não sei, nem quero saber, qual é o futuro que me espera. O melhor sobre o meu futuro é que eu não o conheço.” Este e outros estão entre os últimos pensamentos reunidos no livro O Caçador de Histórias que a Antígona irá lançar no mercado no mês de Setembro. É o título que se segue ao canónico latino-americano As Veias Abertas da América Latina com que a editora iniciou este ano o projecto de publicar em Portugal a obra do homem que se dizia movido pela curiosidade.

Lendo o autor, ouvindo muitas das suas entrevistas, o depoimento de 11 minutos da praça da Catalunya funciona como uma biografia breve do escritor que quebrou barreiras de género, praticou jornalismo, poesia, crónica, escreveu ficção como quem escreve ensaio e vice-versa, mas foi sempre político em toda a sua obra, tornando-se um exilado na década de 70 pela oposição ao regime do seu país. Rejeitava, no entanto, o epíteto de intelectual. “Se você tivesse pedido a minha versão sobre o destino da humanidade, teria dito que não! Eu gosto é de jogar conversa fora. (...) Não sou um guru de nada, nem sábio. (...) Os intelectuais dão-me pena. Eu não quero ser um intelectual. (...) Os intelectuais são os que divorciam a cabeça do corpo. Eu não quero ser uma cabeça que rola por aí. Eu sou uma pessoa. Sou cabeça, corpo, sexo, barriga, tudo! Mas não um intelectual, esse personagem abominável. Como dizia Goya, ‘a razão cria monstros’. Cuidado com quem apenas raciocina.”

Era visceral, tinha humor, apaixonava-se, desapaixonava-se. E não renegou, mas quis afastar-se do livro que mais o deu a conhecer e que escreveu aos 31 anos, em 90 noites movidas a cafeína, como lembra Maria Afonso, editora na Antígona, sobre a origem desse As Veias Abertas da América Latina, obra em que faz a denúncia das ditaduras sul-americanas e apresenta uma alternativa à versão oficial da história daquele continente, uma versão muito crítica do colonialismo baseada na ideia de que primeiro a Europa e depois a América do norte exploraram a imensa terra em forma de coração situada no hemisfério sul. “A divisão internacional do trabalho consiste no facto de alguns países se terem especializado em ganhar e, de outros, em perder. A região que nos cabe no mundo, e a que hoje chamamos América Latina, foi nisso precoce: especializou-se em perder, desde os remotos tempos em que os europeus do Renascimento se lançaram ao mar e lhe ferraram os dentes na garganta”, escreve na introdução à obra que a esquerda latino-americana tratou como uma bíblia e é agora publicada pela primeira vez em Portugal na sua versão completa. A que existia é de 1998 (ed. Dinossauro) e era apenas uma tradução parcial do livro que Galeano deixou de ser capaz de ler, como confessou na Bienal do Livro de Brasília, em 2014. “Para mim, essa prosa da esquerda tradicional é chatíssima. O meu físico não aguentaria. Seria internado nas urgências.”

As razões do incómodo eram razões de alegada falta de conhecimento. À luz do que sabia naquele seu tempo presente de 2014, sentia que aos 31 anos não tinha competência para escrever uma obra cuja teoria se sustentava em fundamentos económicos. “Mas isso era tudo soberba, uma modéstia exagerada dele. Ele apaixonou-se muito pelo livro, pelas criticas que faz a todas as tiranias constantes na América Latina”, refere Luís Oliveira, editor e fundador da Antígona, depois de justificar a decisão de publicar seis títulos de Galeano, começando justamente por As Veias... “O Galeano é um autor que desde o início se inscreve no nosso projecto editorial. Pela crítica que fez as ditaduras latino-americanas, por toda a posição social, pela qualidade da escrita. Há muito tempo que queria publicar este livro mas os direitos estavam disponíveis apenas para a língua portuguesa do Brasil. Só após a morte do autor os herdeiros resolveram separar as águas.”

O livro chegou na Primavera deste ano. “Era a maior lacuna em Portugal da obra de Galeano”, salienta Maria Afonso, que acabou de rever O Caçador de Historias e leu-o como um livro de balanço onde entre muitas reflexões pessoais, artísticas, políticas, literárias se contam também episódios sobre a produção de As Veias Abertas da América Latina. Acrescenta outra interpretação às afirmações de Galeano: “Penso que a aparente rejeição prende-se muito com o peso sufocante desta obra na produção total do autor. Galeano tinha receio de vir a ser conhecido só por esse livro, quando desenvolveu uma literatura mais vasta, que esbate as fronteiras entre géneros. Temia ficar conotado apenas com este livro, que o resto da obra fosse eclipsada.”

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Christopher Pillitz/Getty Images

Sangrento e que faz sangrar

Quando foi publicada no Uruguai, a obra teve um início de vida modesto e vendas insignificantes. Fora autorizado pelo regime que o confundira com um livro de anatomia. Seis meses depois, proibiu-o como um “instrumento de corrupção da juventude”. Era o princípio da sua legitimação como “instrumento” da oposição e de denúncia, traduzido para doze idiomas e mais de um milhão de exemplares vendidos, com uma influência que alastrou a todos os continentes.

“Este livro foi escrito para conversar com as pessoas. Um autor não especializado dirigia-se a um público não especializado, com a intenção de divulgar certos factos que a história oficial, história contada pelos vencedores, esconde ou mente”, diz Galeano numa nota acrescentada à edição de 1977, altura em que a proibição já se estendia a vários países da América Latina e havia uma vasta produção crítica ao livro. “Durante aqueles anos, os da Operação Condor, em que as ditaduras se reproduziam com características muito semelhantes – quase idênticas – em diferentes países da América Latina, também proibiam as mesmas coisas”, lê-se um dos textos que compõem O Caçadores de Histórias. Voltando a 1977, Galeano contextualiza o percurso do livro que o tornou famoso e refere: “A resposta mais estimulante não veio das páginas literárias dos jornais, mas de alguns episódios reais passados na rua. Por exemplo, a rapariga que ia a ler este livro para a companheira sentada ao seu lado e que acabou por se levantar, lendo-o em voz alta para todos os passageiros enquanto o autocarro atravessava as ruas de Bogotá; ou a mulher que fugiu de Santiago do Chile, nos dias da matança, com este livro embrulhado entre as fraldas do bebé; ou o estudante que durante uma semana percorreu as livrarias da Calle Corrientes, em Buenos Aires, e que foi lendo aos bocadinhos, de livraria em livraria, porque não tinha dinheiro para o comprar.”

A crítica e a identidade

A história d’As Veias... foi sendo também a da sua leitura. Clandestina, doutrinária, entusiasmada (no sentido em que Galeano definiu o entusiasmo, gravidez de uma qualquer possibilidade melhor), do folclore e mitologia criados à sua volta. Um dos episódios mais conhecidos foi protagonizado por Hugo Chávez. O ex-presidente da Venezuela ofereceu-o a Barack Obama em 2009, numa cimeira americana. Acto cruel, afirmaria Galeano. Porque a edição estava em castelhano, língua que Obama não falava, e - temia Galeano - Chávez também não entendera a “contra-história”, a matéria do livro.

Galeano parecia sorrir sempre ante isto que lhe escapava acerca de As Veias Abertas da América Latina que olhava de longe no fim da sua vida. Houve quem lhe tivesse chamado conservador, à imagem de outros que em jovens escreviam prosa radical e mais tarde cediam ao que criticavam. Compararam-no, nesse sentido, a John dos Passos. Ele continuava, no entanto, a dizer-se de esquerda, não se coibindo de criticar os regimes cubanos ou venezuelanos. Em 2014, depois das declarações em Brasília, Merilee Grindle, directora do David Rockefeller Center para os estudos latino-americanos em Harvard, afirmava ao New York Times que se ensinasse o livro incluiria nas aulas os comentários do autor de modo a “gerar uma discussão sobre como vemos e interpretamos os acontecimentos em diferentes momentos”. O jornal lembrava polémicas antigas e reconstituía o historial de reacções. Por exemplo, que nos anos 90, defensores do Mercado livre, como Plinio Apuleyo Mendonza - o diplomata e escritor colombiano amigo de Gabriel Garcia Márquez -, o escritor cubano Carlos Alberto Montaner ou o jornalista peruano Álvaro Vargas Llosa (filho e Mario Vargas Llosa) chamaram ao livro de Galeano a “bíblia dos idiotas” e criaram o que em português seria o “Guia para o Perfeito Idiota latino Americano”, reduzindo a tese de Galeano a uma frase: “somos pobres; a culpa é deles”.

Voltamos ao presente, à edição portuguesa actual. “O livro é uma semente de humanismo”, afirma Maria Afonso; “um livro sangrento e que faz sangrar”, salienta Luís Oliveira. Não os ter, dizem, “era uma grande falha para tentar perceber a riqueza do pensamento de Galeano”.

Galeano talvez se entuasiasmasse com a ideia de Merile Grindle. Ele fez um pouco essa análise a uma distância de mais de 40 anos nos fragmentos que constituem O Caçador de Histórias, obra quase póstuma produzida em parceria com o seu editor argentino e escrita enquanto lidava com um cancro no pulmão. Conta: “Em 1970, candidatei As Veias Abertas da América Latina ao prémio da Casa de Las Américas, em Cuba. E perdi. Segundo o júri, esse livro não era sério. Em 1970, a Esquerda ainda confundia seriedade com aborrecimento.”  O volume contém memórias, cidades, cafés, livros, reflexões sobre a actualidade, influências, tudo o que integra a identidade de um homem se define assim: “Nasci a 3 de Setembro de 1940, ao mesmo tempo que Hitler devorava meia Europa e ao mundo não se augurava nada de bom. Desde muito pequeno, tive uma grande facilidade em cometer erros. De tanto meter a pata na poça, acabei por demonstrar que iria deixar uma pegada profunda da minha passagem pelo mundo. Com a saudável intenção de aprofundar essa marca, fiz-me escritor, ou tentei sê-lo. Os meus trabalhos de maior êxito são três artigos que circulam com o meu nome na Internet. Na rua as pessoas interpelam-me para me felicitarem, e sempre que isso acontece ponho-me a desfolhar o malmequer: – Mato-me, não me mato, mato-me… Nenhum desses artigos foi escrito por mim.”

Esta autobiografia sucinta surge em O Caçador de Histórias, o livro que está para chegar, deste escritor que começou a escrever nos jornais depois de ter sido ilustrador e ter tido outras profissões de sobrevivência. “O Caçador de Histórias vem a seguir porque foi o último livro que Galeano completou. Damos um passo desde o mais conhecido para o livro completado um ano antes da morte do autor. É um bocadinho uma súmula de todos os géneros que cultivou e da uma visão bastante abrangente. Apresenta-o, de certa maneira aos livros que vêm a seguir”, justifica Maria Afonso.

Seguem-se O Livro dos Abraços (1989), As Palavras Andantes (1993), Mulheres (1997) e Espelhos (2008), três por ano que se vêm juntar aos já publicados em português De Pernas para o Ar (Caminho), Futebol: Sol e Sombra (Livros de Areia), História da Ressurreição do Papagaio (Kalandraka) e dois volumes da trilogia Memória do Fogo (Livros de Areia). “Escrevi Futebol: Sol e Sombra para a conversão dos pagãos. Quis ajudar os fanáticos da leitura a perder o medo do futebol, e os fanáticos do futebol a perder o medo dos livros. Mas nunca imaginei mais nada”, escreve uma vez mais em O Caçador de Histórias, misturando insubmissão, ironia, desconcerto e uma grande condescendência para com a falha. Tudo cruzado por uma espécie de nostalgia: a de quem sabe que se está a despedir.

Mais uma vez, fixa-se no seu presente, mesmo quando o tema é o passado, mesmo quando trabalha sore a memória e faz da escrita histórica um acto de criação. “Há um episódio engraçado sobre um livro de Galeano [Días y noches de amor y de guerra] que estava a ser traduzido para alemão. Começa com uma frase de Marx. O tradutor conhecia muito bem a obra de Marx e andava à procura da citação para a citar textualmente. Ligou ao autor a perguntar onde estava e o Galeano responde de um modo que serve de exemplo para as acusações de falta de factualidade: ‘a frase é de Marx, ele é que se esqueceu de a escrever’.”