Brasil: o galinheiro é das raposas
O Brasil está de novo adiado. As raposas são as donas do galinheiro e não toleram mudanças nas regras.
Há um verso do hino brasileiro que chama ao país “impávido colosso” — uma boa descrição do país nos dias de hoje. Já não estou tão certo sobre o verso seguinte, que diz: “e o teu futuro espelha essa grandeza”.
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Há um verso do hino brasileiro que chama ao país “impávido colosso” — uma boa descrição do país nos dias de hoje. Já não estou tão certo sobre o verso seguinte, que diz: “e o teu futuro espelha essa grandeza”.
Impávido colosso, sim, que impotente viu 263 deputados votarem para impedir a investigação das denúncias de corrupção contra Michel Temer (seriam necessários 342 votos para que o presidente pudesse ser julgado no Supremo Tribunal; só houve 227 votos a favor da investigação das denúncias). A comparação entre este voto e aquele de que há uns meses foi alvo Dilma é mais do que instrutiva. Os deputados que então votaram contra a presidente em nome da família, do cachorro e “do evangelho quadrangular” limitaram-se agora, com Michel Temer, a fazer uma muralha sem moral em torno de um presidente gravado a discutir entregas de subornos para manter os seus aliados calados.
Não adianta negar a grande mentira que mina os alicerces do sistema presidencialista brasileiro (e veremos, em breve, se não é caso dos EUA também): a impugnação do chefe de estado, supostamente possível apenas pela prática de crimes no cargo, não é uma questão de justiça, se é que alguma vez o foi. É uma questão de aritmética: se há votos suficientes, a presidente é afastada sem provas; se não há votos suficientes, as provas contra o presidente não são investigadas. A partir daí, a aritmética política transforma-se em aritmética financeira: se há dinheiro suficiente para comprar os votos para impedir uma investigação contra o presidente, o presidente é inocente. A corrupção compra a sua própria absolvição.
A clareza do voto para salvar Temer permite agora fazer duas leituras sobre a crise política brasileira. Ambas, é verdade, um tanto inúteis no imediato.
A primeira é de âmbito constitucional. Se o sistema presidencialista é para ser assim tão adaptável às conveniências do momento político e do bolso dos congressistas, mais vale optar de uma vez pela transparência objetiva do sistema parlamentar: o governo cai quando deixa de ter apoio do parlamento, ponto. O que se passou no Congresso brasileiro nos últimos anos tornou as coisas claras. Não há ali, maioritariamente, uma classe política sintonizada com a população no combate contra a corrupção. O que há, isso sim, é uma classe política que lutou desalmadamente pela sua sobrevivência da corrupção, que é a sua própria sobrevivência. Mesmo que mantenha o presidencialismo, o Brasil só pode voltar a avançar com uma reforma política.
A segunda é da ordem da genealogia política. Já era evidente desde os tempos do “mensalão” que a ação política de Lula e do Partido dos Trabalhadores poderia produzir este resultado. Lula e o PT escolheram trabalhar com o Congresso como ele era, sob pena de não conseguirem cumprir com nenhuma parte do seu programa de desenvolvimento social do Brasil. Ninguém pode negar — muito menos quem tenha conhecido o Brasil antes, durante e depois de Lula — que o país beneficiou de um extraordinário desenvolvimento político na primeira década deste século. O problema é que, por via da complacência com a corrupção, o Brasil sofreu também um enorme retrocesso político, de que agora está a pagar o preço.
Quando Dilma foi eleita pela primeira vez, em 2010, foi com uma atitude mais fria em relação aos corruptos no Congresso e no próprio governo — o que lhe foi sempre levado a mal, até pelos políticos do seu partido. Na sua reeleição, em 2014, tinha no programa a realização de um plebiscito para uma reforma política no país. Só que essa reforma política será por agora impossível de implementar. O Brasil está de novo adiado. As raposas são as donas do galinheiro e não toleram mudanças nas regras.