A estrela que brilha e a estrela que quer brilhar
Na noite de abertura dos Encontros de Arles, todos trataram Annie Leibovitz como fotógrafa-estrela. E ela pareceu gostar. Mas há quem dispa o estatuto de estrela para tentar compreender, através da autorepresentação o sucesso e a notoriedade. Foi o que fez Audrey Tautou.
Se os Encontros de Fotografia de Arles fossem representados como um mapa topográfico, trocando o relevo pelo ego dos autores convidados, as curvas de nível seriam tantas e tão variadas que a sua representação cartográfica resultaria em altitudes muito assimétricas, podendo haver até quem pensasse que a cordilheira dos Alpes tinha deslizado para a grande planície e zona húmida do delta do rio Ródano, a linha-d’água que atravessa aquela cidade camarguesa. Da quase invisibilidade, aos píncaros da sobreexposição. Da mais modesta presença à mais espalhafatosa passagem. Por estes dias, há de tudo um pouco em Arles, como, aliás, seria de esperar num festival carregado de exposições e muitos egos à solta.
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Se os Encontros de Fotografia de Arles fossem representados como um mapa topográfico, trocando o relevo pelo ego dos autores convidados, as curvas de nível seriam tantas e tão variadas que a sua representação cartográfica resultaria em altitudes muito assimétricas, podendo haver até quem pensasse que a cordilheira dos Alpes tinha deslizado para a grande planície e zona húmida do delta do rio Ródano, a linha-d’água que atravessa aquela cidade camarguesa. Da quase invisibilidade, aos píncaros da sobreexposição. Da mais modesta presença à mais espalhafatosa passagem. Por estes dias, há de tudo um pouco em Arles, como, aliás, seria de esperar num festival carregado de exposições e muitos egos à solta.
O que não deixa de ser surpreendente é ver como a organização dos Encontros, que tem o francês Sam Stourdzé na liderança, se deixa encandear pelo mainstream fotográfico em detrimento de obras e autores menos badalados, mas porventura com outra pujança de reflexão, espírito inventivo e força criativa. Não se percebe, por exemplo, como é que para a tradicional noite de abertura decidiu repisar o trabalho de Annie Leibovitz (Connecticut, 1949), deixando de lado nomes como Joel Meyerowitz (Nova Iorque, 1938), Roger Ballen (Nova Iorque, 1950) ou Paz Errázuriz (Santiago do Chile, 1944), todos com fortes exposições individuais na edição deste ano, todos com um longo e reconhecido percurso.
As luzes à espera de Leibovitz
A maneira acelerada como o irlandês Richard Mosse (ele próprio, naquela noite, merecedor de outro tempo de antena) conduziu a sua apresentação antes de entrar em cena Leibovitz foi exemplificativo da reverência exagerada para com a norte-americana. No início da apresentação, Mosse sentiu-se na obrigação de dizer que tinha de ser rápido porque Annie Leibovitz entraria para o centro do Teatro Antigo de Arles logo a seguir. Mas Leibovitz mostrou-se condescendente e gritou de algures: “Take your time!” Houve risos. E Mosse, ainda acelerado, começou a desfiar pormenores acerca do trabalho que lhe valeu este ano o Prix Pictet, um dos mais reputados prémios de fotografia do mundo. Falou da série Heat Maps, captada com câmaras militares capazes de detectar calor humano a mais de 30 quilómetros (consideradas uma arma ao abrigo da legislação internacional). Nos últimos anos, o fotógrafo dedicou-se a rastrear com estes aparelhos as deslocações de refugiados e migrantes que têm chegado à Europa, vindos do Médio Oriente e do Norte de África.
E depois da “fotografia calorosa” de Mosse e de um interlúdio — durante o qual, entre outros momentos, a milionária Maja Hoffmann (responsável pela Fundação Luma, um dos patrocinadores dos Encontros) foi “coroada” por Stourdzé como a “rainha da cultura de Arles” —, foi a vez de Leibovitz ocupar a ribalta com a sua fotografia que balança entre a intimidade familiar e a hiperprodução hollywoodesca. Começou com as imagens do seu círculo mais próximo e passou para a galeria de famosos, com o anúncio de um novo livro pelo meio (já tinha imaginado fechá-lo com um retrato de Hillary Clinton na Casa Branca, mas Donald Trump estragou-lhe o plano). Entre as novas imagens (que foi passando rapidamente) não houve nada de muito diferente em relação ao que já vimos do seu trabalho mais recente: é hoje, sobretudo, uma fotógrafa de estrelas que gosta de pôr pó dourado em cima daquilo que já brilha, ou seja, muita produção e algum cenário.
A exposição no Parc des Ateliers — Annie Leibovitz: The Early Years, 1970-1983, feita com parte do arquivo comprado este ano pela Luma, numa montagem digna de figurar nos manuais sobre como não fazer uma exposição de fotografia — tem o mérito de mostrar a evolução da fotógrafa desde o momento em que tinha uma maneira instintiva de fazer imagem, até aos primórdios dos retratos preparados ao detalhe e destinados às capas de revistas ou discos. Quer numa quer noutra fase há, pelo menos, uma coisa comum: muitos famosos. E este é um filão (e um novelo sem fim) do qual Leibovitz não abdica. Essa convivência estelar desde há décadas parece ter tido efeitos contagiantes, ao ponto de ela própria encarnar (e isso notou-se na noite de abertura de Arles) a figura de fotógrafa-estrela.
Audrey Tautou a ser ela
Em sentido inverso — e este confronto entre tantas propostas autorais é que torna um festival como Arles tão estimulante —, há quem dispa o estatuto de estrela para tentar compreender, através da auto-representação fotográfica, a mediatização, o sucesso e a notoriedade. Foi o que fez a actriz Audrey Tautou (O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, 2001) ao revelar em Arles, numa surpreendente exposição (Superfacial), como através das fotografias que capta de si consegue justamente deixar de ser uma celebridade, imagens em que, confessou ao Le Monde, apesar da mise en scène não se sente a desempenhar qualquer papel.
A exposição na Abadia de Montmajour (até 24 de Setembro), comissariada por Sam Stourdzé (numa prova de que o director dos Encontros também gosta de arriscar), começa com um grande mural de polaroides que Tautou captou de centenas de jornalistas durante rondas de entrevistas em que já participou. Para cada imagem foi respeitado um ritual meticuloso: nas badanas brancas há indicação de nome do filme em promoção, da hora da entrevista e nome e origem dos media. Apesar de o imenso painel mostrar os rostos de outros, é em Audrey Tautou que pensamos ao olhar para elas, como se através do olhar daqueles jornalistas (entre o divertido, o surpreendido e o ligeiramente aborrecido) fosse possível formar um autorretrato latente em forma de mosaico. A actriz, que mostra publicamente pela primeira vez o seu labor fotográfico, pediu autorização a todos os jornalistas para usar estas imagens e apenas um recusou.
Em entrevista ao Le Monde, Tautou recusa olhar para estas polaroides como um exercício do tipo “virar o feitiço contra o feiticeiro”. Entende-as como uma forma de “recuo” (uma defesa?) em relação ao turbilhão mediático em que ficou enredada depois do sucesso de Amélie Poulain. Por outro lado, a actriz confessa que, ao fazer estas fotografias acaba por encontrar “algum sentido” na promoção dos filmes, um trabalho de tal maneira “louco” que a impeliu a “guardar alguma coisa” para si desses momentos fugazes. Assume que alguns jornalistas ficaram “preocupados” com os seus planos para aquelas imagens, mas é a própria a assumir as suas fotografias são “alegres e ligeiras” e que gosta de pôr em tudo o que faz alguma “derisão e humor”. Ou seja, não se leva demasiado a sério. “Os meus autorretratos são pessoais até na sua imperfeição técnica.”
A atitude despretensiosa de Tautou em relação à fotografia — que vai praticando com mais afinco desde há 20 anos (tal como o desenho e a escrita) — nota-se nas três outras séries que dão corpo a Superfacial. Aquilo que podia facilmente transformar-se numa obsessão com a sua figura e consigo própria, transparece antes como um mundo secreto de reflexão sobre a sua condição de celebridade, um mundo em que a actriz famosa deixa de o ser para ser uma mulher que se observa e que finge ser outras personagens, como, aliás, qualquer ser humano. Por estas imagens conseguimos tocar a fisicalidade de alguém que parece recusar a condição abstratizante onde o estrelato a podia encerrar. “A fotografia para mim é um trabalho extremamente íntimo”, confessou ao Le Monde.
Logo depois do mosaico de jornalistas com ar pasmado, a câmara vira-se para Tautou. Para uma série de autorretratos onde explora o reflexo da sua imagem em espelhos e vidros, ou nas sombras projectadas no chão. Num primeiro momento, há uma linha de imagens a cores, que marcam um ritmo de vida, um quotidiano. A seguir, pequenos núcleos de três ou quatro fotografias a preto e branco onde experimenta olhar-se de vários ângulos, numa dança sobre si, mais poética e ainda mais a sair de si própria (para, finalmente, se reencontrar consigo). No Le Monde, em entrevista a Claire Guillot: “A minha fotografia não está tanto ligada ao meu trabalho, mas mais ao estatuto que vem com ele. Há todo um mundo que é construído pela mediatização. Somos alvo de fantasmas e, infelizmente, veículo de certos clichés. Antes de ser eu, sou sua. Quando somos actrizes de cinema, a nossa imagem precede-nos. E eu sempre lidei mal com o sucesso, a notoriedade.”
Mas é na última série, com imagens preparadas ao detalhe e a assumirem toda uma mise en scène, onde Audrey Tautou mais arrisca e mais provoca. Arrisca que a vejam a engaiolar-se na sua profissão (onde se duplica, se mascara e representa). Provoca, porque decide andar na linha mais ilógica (a da representação, do cenário efabulado e da celebridade) para dizer que está exatamente a fazer (e a ser) o contrário: a ser ela, Audrey Tautou. “Sou uma actriz, mas não sou só uma actriz. Esta parte de mim que cresceu, cresceu, cresceu ao longo dos últimos anos tornou-se mais importante para o meu equilíbrio do que podia pensar. Agora, é esta parte de mim que quero expressar e desenvolver. Para mim, é algo muito íntimo, não é um hobby. É uma maneira de me tornar completa”, disse ao New York Times.
Para estas imagens de aventureiras, antigos heróis de guerra, ou condenadas por excesso de velocidade, Tautou planeou todos pormenores de composição e construiu ou descobriu todos os adereços. São imagens que alternam entre a existência de um mundo secreto, onde os objectos e os lugares se assumem também como protagonistas, e uma tentativa de se despir (literalmente) de tudo, para que não nos percamos em mais nada a não ser na sua corporalidade, da sua existência enquanto pessoa, que está para além da figuração e da fantasia, da sua existência enquanto actriz.