Um conto de três cidades e de cidade nenhuma, por Kevin Morby
City Music confirmou-o como um dos mais interessantes autores do folk-rock americano. Um disco sobre a vertigem da vida na grande cidade, rápida e intensa, e sobre a imensa solidão que ela esconde. Kevin Morby falou ao Ípsilon antes do concerto no Super Bock Super Rock.
Não faltava muito para que o víssemos em palco, tocando no Super Bock Super Rock perante o público que se colará às grades e que se acomodará sobre a pala do Pavilhão de Portugal. Isso será depois. Neste momento, recolhido no camarim no interior do pavilhão, faz por passar o tempo enterrado num sofá de onde saem as longas pernas de tipo muito mais alto do que aparenta. Veste o fato-macaco de castanho esbatido que usará no concerto. O mesmo, imaginamos, em que se conduz, qual operário iluminado da canção americana, do seu folk e do seu rock’n’roll, por Nova Iorque, por Kansas City, por Los Angeles, as três cidades que, dirá, são a sua casa, aquelas, em especial a primeira, que originaram City Music, o belíssimo álbum que editou em Junho.
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Não faltava muito para que o víssemos em palco, tocando no Super Bock Super Rock perante o público que se colará às grades e que se acomodará sobre a pala do Pavilhão de Portugal. Isso será depois. Neste momento, recolhido no camarim no interior do pavilhão, faz por passar o tempo enterrado num sofá de onde saem as longas pernas de tipo muito mais alto do que aparenta. Veste o fato-macaco de castanho esbatido que usará no concerto. O mesmo, imaginamos, em que se conduz, qual operário iluminado da canção americana, do seu folk e do seu rock’n’roll, por Nova Iorque, por Kansas City, por Los Angeles, as três cidades que, dirá, são a sua casa, aquelas, em especial a primeira, que originaram City Music, o belíssimo álbum que editou em Junho.
“Uma grande fonte de inspiração foi Nova Iorque, mas isso é reflexo da minha experiência pessoal. Quis criar um disco com que fosse possível criar uma relação qualquer que seja a cidade que habitemos”. City Music é, portanto, um álbum sobre “como todas as cidades são genericamente iguais, mas ao mesmo tempo diferentes, dada a personalidade construída pelas pessoas que nelas moram”. É um disco de alguém que atravessa as ruas sozinho entre a multidão, sobre alguém que, do alto do arranha-céus, observa a vida que passa em corrupio nos passeios lá em baixo e que se pergunta quantas daquelas pessoas terão já passado pela sua vida. É, na discografia de Morby, baixista dos Woods antes do início da carreira a solo, a manifestação da vontade de não se repetir.
Seeing Saw, o álbum anterior, tinha o coração na folk e era iluminado por uma lua cheia criando sombras misteriosas entre a ramagem do bosque. Morby cantava-o naquele canto quase falado, Dylanesco, e sussurrava as palavras como quem cresceu com os discos de Leonard Cohen por perto. City Music, por comparação, é eléctrico e agitado. Morby continua a ser a voz que canta histórias para si mesmo, intimista, mas fá-lo entre a multidão anónima enquanto Lou Reed, e não Leonard Cohen, canta nos phones que leva agarrados aos ouvidos.
"Singing Saw reflectia a natureza selvagem, os vales, as montanhas e os desfiladeiros, daí ser muito denso. Não me querendo repetir, quis que o disco seguinte fosse o oposto. Um disco que se assemelhasse a uma cidade, ou seja, mais minimal, directo e barulhento”, descreve. Curiosamente, City Music foi gravado bem longe do ambiente que o inspirou. Acompanhado pela guitarrista Meg Duffy (Hand Habits) e pelo baterista Jim Sullivan, Kevin Morby levou as canções da cidade para um estúdio californiano com vista sobre o Pacífico (Panoramic Studios, em Stinson Beach) – mais tarde, completou a produção no Oregon, com Richard Swift. “Seeing Saw foi composto em L.A., mas gravado em Nova Iorque”, recorda. “Aqui aconteceu o contrário. Essa mudança permite-nos pôr um pé fora da história e olhar para ela de outra perspectiva. O disco não é descontraído, mas gravámo-lo de uma forma muito descontraída. A simples mudança de local funciona quase como trabalho de edição”.
Kevin Morby diz “história” quando fala do conjunto de canções que compõem o álbum. E manifestará a convicção de que o desejo de não se repetir e de “explorar diferentes dimensões musicais” – “é isso que torna um catálogo a solo interessante” – não redundará em dispersão que anule a sua marca autoral. Porquê? “Acredito que, apesar das diferenças, tudo soará a mim. Tenho a pretensão de fazer das canções algo de literário e gosto de pensar que o que liga tudo é a narração, a escrita”.
City Music, quarto álbum de um percurso iniciado em 2013 com Harlem River, a que se seguiu Still Life, contém uma canção intitulada Flannery (O’Connor, completemos) e Morby tem-se dedicado a escrever contos que poderão tornar-se no futuro outra extensão pública da sua criatividade. O tema principal do álbum – “all alone on a crowded street”, canta ele em Crybaby – foi-lhe em parte sugerido por uma reportagem avassaladora publicada em 2015 no New York Times, sob o título "A morte solitária de George Bell”. É o relato da busca por alguém que chorasse o homem que morrera sozinho num apartamento nova-iorquino, sem amigos, sem família, sem pistas evidentes quanto ao seu passado. Uma vida que se apagava e que desapareceria sem deixar rasto algum. É uma história nova-iorquina, ou melhor, a história de uma grande metrópole.
“Nova Iorque tem esse lado bom, que é permitir viver uma experiência solitária rodeado de gente e sem sentir que estamos a ser julgado de alguma forma. Podemos comportar-nos como um louco que ninguém repara em nós”. Nova Iorque tem o que existe de melhor no mundo, diz Morby, é "uma Meca", continua, “um local muito inspirador”. Um sítio onde, porém, se pode morrer como George Bell. “Ninguém quer morrer assim, mas penso que, nesses casos, a vida nos encaminha para esse fim sem que o apercebamos”, reflecte. “É assustador imaginar esse fim, mas não devemos preocupar-nos com ele. Devemos rodear-nos de pessoas”. Di-lo e recordamos uma canção de City Music em que a nostalgia por pessoas e lugares distantes na memória dá lugar à consciência de como todos esses rostos e paisagens continuam hoje presentes. De reflexão à celebração conjunta: “All aboard my train”, canta Morby: “I have loved many faces, many places / All aboard my train, but depart at different stations / And some of them look the same / but none of them smell the same / And some of them will never change / While some of them are growing strange”.
Kevin Morby nasceu no Texas mas cresceu em Kansas City. Aos 17 anos mudou-se para Nova Iorque, perseguindo a cidade que o cinema e da literatura haviam moldado no seu imaginário. Juntou-se aos Woods, formou os The Babies, iniciou uma carreira a solo. Aos 29 anos, tem lar dividido por três territórios. “Los Angeles, onde vivo agora, é a minha casa. Kansas, onde cresci, também é a minha casa. Nova Iorque é a minha casa. Sinto essas três cidades da mesma forma. São o meu lar”. Na escrita inspirada sobre a solidão na grande cidade, na forma como a electricidade rock’n’roll, vida rápida e intensa, se confronta com o efémero da existência, City Music é o álbum que Kevin Morby escreveu para todas elas. As três cidades dele. E as nossas.