Do céu "caiu" uma avioneta

Salvaram-se, porventura, duas vidas à custa de outras duas. Serão contas certeiras?

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Tersius van Rhyn/Reuters

Não caiu, mas podia ter caído. E, por isso, com tempo ou sem ele, decide a avioneta aterrar na praia sem a conta dos circunstantes. E com ela, aterrou um conjunto ainda não detido de questões morais. E até que muitos se dêem conta, já uns tantos saem a julgar os da avioneta, com outros dizendo que teriam feito a mesma coisa.

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Não caiu, mas podia ter caído. E, por isso, com tempo ou sem ele, decide a avioneta aterrar na praia sem a conta dos circunstantes. E com ela, aterrou um conjunto ainda não detido de questões morais. E até que muitos se dêem conta, já uns tantos saem a julgar os da avioneta, com outros dizendo que teriam feito a mesma coisa.

Salvaram-se, porventura, duas vidas à custa de outras duas. Serão contas certeiras? Quiçá os da avioneta valham mais do que os falecidos. Compensará, justificar-se-á, o acontecido? Não há, obviamente, modo algum de entender se valem ou valiam as pessoas diferentemente, não há também forma de cuidar se os da avioneta tinham uma maneira de saber, de saber o que fazer, de contabilizar os prós e os contras, a toda a hora somos forçados a agir na medida da auto-preservação, sem que subsista o tempo ou a oportunidade de conhecimento de tudo o que isso implica, poderemos nós ser julgados, podem os da avioneta sê-lo, pela reacção que a todos toca ou tocaria?

Claro, há as vítimas, é tal-qualmente "fácil" colocarmo-nos no seu lugar, na mortandade antecipada, no sofrimento de tantos que elas afectam, afectariam ou viriam a afectar, às tantas, dá vontade de apontar o dedo aos "óbvios" culpados, é uma reacção "normal", a empatia é sempre normal, como é a acção (e compreensão) de quem faz por salvar a sua própria vida. Normal é também esta ambiguidade, esta quase impossibilidade de "culpar", porque quando podemos responsabilizar, há um modo de suportar, e de prosseguir, mas, aqui, parece tudo tão justo, e igualmente injusto, é difícil apontar um dedo, olha, mais vale falar daquele pai aparentemente insensível, que, por sua vez, fala da filha que "tem de enterrar", explicando o ocorrido com uma surpreendente pormenorização desafectada, isto, sim, parece estranho, talvez mais estranho que a avioneta que desce ou que o drone que sobe, e eu a julgar que seria mais provável morrer afogado ou ser apanhado por um "tsunami", os meus receios de sempre que piso as areias da Caparica...

E enquanto falo daquele pai, talvez possa esquecer a menina — "e se fosse a minha filha?" —, esperando que a culpada madrasta seja a pura contingência. Desconfortável tamanha imprecisão, mas, para variar, choremos e prossigamos, como fazemos frequentemente quando a ubiquidade moral nos atropela, deixemos, então, a dúvida amarar, afogando a consternação; mais tarde, virão os destroços à superfície. E "questionar" continuará a ser a melhor resposta, e o mais perfeito julgamento. O mar, esse, terá, como sempre, as ondas em vaivém de retorno, molhando os grãos do areal incontável.