Um “Verão danado” para celebrar os 70 anos de Locarno

Festival suíço que ajudou a lançar Jarmusch, Glauber ou Forman faz anos a partir desta quarta-feira e até dia 12, com Miguel Gomes no júri e dois filmes portugueses em concurso. Harry Dean Stanton, Isabelle Huppert, Wang Bing ou Todd Haynes fazem parte do programa.

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Eis o Festival de Locarno a entrar na “ternura dos setentas”: o certame suíço festeja, a partir desta quarta-feira e até ao próximo dia 12, o aniversário redondo dos 70 anos de existência, apenas três meses depois de Cannes. (À imagem do “irmão mais velho” da Côte d’Azur, a primeira edição do festival teve lugar em 1946, e houve apenas dois anos desde então sem evento.)

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Eis o Festival de Locarno a entrar na “ternura dos setentas”: o certame suíço festeja, a partir desta quarta-feira e até ao próximo dia 12, o aniversário redondo dos 70 anos de existência, apenas três meses depois de Cannes. (À imagem do “irmão mais velho” da Côte d’Azur, a primeira edição do festival teve lugar em 1946, e houve apenas dois anos desde então sem evento.)

É um aniversário que confirma a importância crescente de Locarno ao longo dos últimos 20 anos como “reserva moral” do cinema novo internacional, ponto de encontro cinéfilo, e lugar de descoberta que talvez já não seja possível nos “três grandes” — Berlim, Cannes e Veneza, demasiado enredados nas “ligações perigosas” com a indústria e o mercado, para onde os grandes estúdios preferem dirigir as suas apostas de prestígio. Basta lembrar que a recompensa máxima do evento, o Leopardo de Ouro, foi entregue ao longo dos anos a nomes pouco evidentes na sua altura como a francesa Claire Denis, o checo Milos Forman, o americano Jim Jarmusch, o iraniano Jafar Panahi, o brasileiro Glauber Rocha ou o português José Álvaro de Morais – ou, em anos recentes, o sul-coreano Hong Sang-Soo ou o espanhol Albert Serra.

A programação competitiva de Locarno (18 títulos este ano no Concurso Internacional; 16 na competição Cineasti del Presente, reservada a primeiras e segundas obras ) corre geralmente mais riscos, abre-se a mais experiências, a cinematografias desconhecidas, a singularidades que podem até nem ter sequência, sem distinguir entre formas e formatos. Este ano cruzam-se na competição principal o mestre chinês do documentário imersivo minimalista Wang Bing (Mrs. Fang, co-produzido pela Documenta) e o iconoclasta francês Serge Bozon (Madame Hyde, variação sobre a história do Médico e do Monstro com a incontornável Isabelle Huppert no papel-título); o canadiano Denis Côté (Ta Peau si lisse, híbrido documentário/ficção sobre um grupo de culturistas) e o actor americano John Carroll Lynch (em tempo de estreia na realização com Lucky, com Harry Dean Stanton e David Lynch nos papéis principais).

Portugal tem sido presença recorrente em Locarno ao longo dos últimos anos, com João Pedro Rodrigues, Pedro Costa, Joaquim Pinto e Gonçalo Tocha a regressarem da Suíça com prémios importantes. Com seis filmes, 2017 não repete o “ano louco” de 2016 – que teve 14 produções e co-produções nacionais, numa comitiva encabeçada por O Ornitólogo de Rodrigues e Correspondências de Rita Azevedo Gomes – mas o realizador Miguel Gomes faz parte do júri do Concurso Internacional presidido pelo cineasta francês Olivier Assayas, e o director de fotografia Rui Poças assina a imagem do filme brasileiro a concurso As Boas Maneiras, ficção de terror assinada pela dupla Juliana Rojas e Marco Dutra.

Verão Danado, primeira longa de Pedro Cabeleira, é o título mais mediático da comitiva portuguesa, competindo nos Cineasti del Presente (júri presidido pelo cineasta egípcio Yousry Nasrallah), com António e Catarina de Cristina Nemes na competição de curtas Pardi di Domani (júri presidido pela actriz francesa Sabine Azéma) e a curta de Miguel Moraes Cabral O Homem de Trás-os-Montes apresentada fora de concurso. Há ainda três co-produções: 9 Doigts, do francês F. J. Ossang, com longa história de amizade com o nosso país, no Concurso Internacional; nos Cineasti del Presente, Milla, segunda longa da francesa Valérie Massadian (cujo Nana lhe valeu o prémio de melhor primeira obra no festival em 2011); e Era uma Vez Brasília, do brasileiro Adirley Queirós (Branco Sai Preto Fica), na Signs of Life, “montra” das propostas mais radicais e experimentais do cinema contemporâneo que passa este ano a secção competitiva.

Não é contraditório conciliar a dimensão “artesanal” destes filmes produzidos independentemente ou com financiamento global com a dimensão de “passadeira vermelha” do certame. Este ano, Nastassja Kinski é convidada de honra, Adrien Brody recebe um prémio de carreira, Mathieu Kassovitz outro de “excelência”. Mas, ao mesmo tempo, celebram-se cineastas “idiossincráticos” como o irredutível Jean-Marie Straub, e o suíço Michel Merkt, produtor de Philippe Garrel, Paul Verhoeven, David Cronenberg e até de Miguel Gomes e Ivo Ferreira. E faz-se uma retrospectiva abrangente do mestre Jacques Tourneur (1904-1977), francês cujo “exílio” americano trouxe alguns dos mais notáveis clássicos da década de 1950 – de A Pantera, Zombie e O Homem Leopardo a O Arrependido e O Expresso de Berlim, com muitos títulos a serem exibidos em cópias de 35mm.

A retrospectiva Tourneur vai ocupar quase por completo o emblemático GranRex, sala vintage dos anos 1960 inteiramente renovada para o 70.º aniversário, marcado igualmente pela abertura do muito almejado “palácio do festival”. O Palacinema, com três ecrãs, foi construído mesmo à beira da Piazza Grande, ex-libris do evento, onde diariamente há projecções ao ar livre para o grande público – uma lotação máxima de 8000 lugares, um ecrã de 26 por 14 metros. A abertura, esta quarta-feira à noite, é com o mais recente filme da actriz e realizadora francesa Noémie Lvovsky, Demain et tous les autres jours.

E como Locarno faz 70 anos, a secção paralela Histórias do Cinema propõe uma escolha comemorativa de uma dúzia de filmes estreados no festival ao longo da sua existência. Entre eles estão obras de Michael Haneke (O Sétimo Continente), Éric Rohmer (Le Signe du lion), Aleksander Sokurov (The Lonely Voice of Man, melhor realização em 1987), Todd Haynes (Veneno) ou Raul Ruiz (Tres Tristes Tigres, Leopardo de Ouro em 1969). E isto anda tudo ligado: Haynes, o realizador de Carol, vai receber um prémio de carreira e mostrar Wonderstruck, o seu mais recente filme, estreado em Cannes; o chileno Ruiz, falecido em 2011, tem a concurso La Telenovela Errante, um filme inacabado de 1980 recentemente completado pela sua viúva, Valeria Sarmiento. Qual será o nome que se irá juntar este ano aos vencedores do Leopardo de Ouro? O júri de Olivier Assayas, que para além de Miguel Gomes conta com a actriz alemã Birgit Minichmayr, o realizador suíço Jean-Stéphane Bron e o produtor grego Christos Konstantokopoulos (Richard Linklater, Ira Sachs ou Yorgos Lanthimos) vai ter por onde escolher.