Miles Davis como sombra de Jeanne Moreau
Em 1957, aproveitando a sua passagem por Paris, Miles Davis foi chamado a registar a sua música como banda sonora para Fim-de-Semana no Ascensor, num sublinhar do desejo e da sufocação ferventes na personagem interpretada pela actriz francesa.
Há qualquer coisa de muito sugestivo, ainda que encenado, nas fotografias (duas em particular) que acompanham as reedições em CD da banda sonora de Ascenseur pour l’Échafaud (Fim-de-Semana no Ascensor): Jeanne Moreau finge experimentar a trompete de Miles, ajudada pelo músico, olhos dele fixados na aproximação da boca dela à embocadura do instrumento – esqueça-se por um segundo que há um fotógrafo na sala e a imagem é de uma fortíssima energia feita de sedução mútua; numa outra foto, a actriz desvia o cabelo, prende uma mecha com a mão direita, e deixa o caminho livre para Miles encostar a trompete ao seu ouvido esquerdo, como se soprasse a música directamente para ela, apenas para ela.
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Há qualquer coisa de muito sugestivo, ainda que encenado, nas fotografias (duas em particular) que acompanham as reedições em CD da banda sonora de Ascenseur pour l’Échafaud (Fim-de-Semana no Ascensor): Jeanne Moreau finge experimentar a trompete de Miles, ajudada pelo músico, olhos dele fixados na aproximação da boca dela à embocadura do instrumento – esqueça-se por um segundo que há um fotógrafo na sala e a imagem é de uma fortíssima energia feita de sedução mútua; numa outra foto, a actriz desvia o cabelo, prende uma mecha com a mão direita, e deixa o caminho livre para Miles encostar a trompete ao seu ouvido esquerdo, como se soprasse a música directamente para ela, apenas para ela.
A música de Ascenseur pour l’Échafaud ouve-se como se fosse empurrada por um tom não apenas de mistério e melancolia, mas também de sensualidade e desejo – Boris Vian chamar-lhe-ia “um clima sedutor e trágico”. Dir-se-ia que o som do quinteto comandado por Miles funciona como uma resposta ao sopro cálido que é a voz de Jeanne Moreau, quando a sua personagem Florence segreda a Julien ao telefone “Je t’attends, je n’attends que toi” ou quando calcorreia as ruas de Paris em vão em busca do seu amante e solta um dorido e quebrado “Julien, je t’aurai cherché partout”.
O encontro de Miles com o realizador Louis Malle é um acidente feliz, ao qual se deve uma das bandas sonoras mais extraordinárias que o jazz foi chamado a ilustrar. Miles Davis chegara a Paris em Novembro de 1957 para uma digressão de três semanas montada por Marcel Romano, aliciado também pelo tempo que poderia passar com a actriz e cantora Juliette Gréco – na sua autobiografia, o trompetista confessa que terá sido neste período que ambos concluíram que seriam “sempre apenas amantes e grandes amigos”.
Em França, Miles Davis afastava-se de um período especialmente profícuo e que ficaria na história com a impressionante experiência do seu primeiro quinteto – montado em 1955 e desmembrado pouco depois, a tempo, ainda assim, de registar em abundância essa formação mítica – e teria como companhia para os concertos europeus uma banda composta por três músicos franceses e o baterista norte-americano Kenny Clarke. Sem grande compromisso que não fosse o de tocar e de se reencontrar com Gréco, Miles entusiasmou-se com a proposta de registar a banda sonora para o filme de Malle, por sugestão do assistente de realização Jean-Paul Rappenau.
Após um primeiro visionamento privado, em que, segundo Romano, o músico pediu explicações sobre o enredo e a relação entre as personagens, tomando notas daquilo que lhe era passado, Miles aproveitou a residência durante uma semana no Club St. Germain para pedir que lhe fosse instalado um piano no quarto de hotel, onde rascunhou as ideias a explorar na gravação de Ascenseur. Os músicos, recordaria o contrabaixista Pierre Michelot, só mais tarde descobriram que Miles já assistira ao filme e levava consigo esboços de ideias que pretendia explorar no estúdio Le Poste Parisien – das poucas instruções concretas para o grupo foi a adopção dos acordes do standard Sweet Georgia Brown para o tema Sur l’autoroute.
A sessão única decorreu durante a noite de 4 de Dezembro, no final dos afazeres de Miles, e de acordo com a descrição de Boris Vian decorreu numa “atmosfera muito descontraída”, com Jeanne Moreau, “ de forma encantadora, a receber músicos e técnicos num bar improvisado”. “Louis Malle”, escrevia ainda Vian, “estava presente e tentava extrair de Miles tudo quanto este quisesse acrescentar às imagens.” Depois Miles fez aquilo em que se tornaria um mestre ímpar, guardando a intenção total para si, partilhando com os músicos apenas o bastante para deles conseguir quanto pretendia.
Diante das cenas preparadas por Malle, o quinteto improvisou uma música que se inspira no frémito próprio de um film noir que inclui um assassínio e as inevitáveis fugas e perseguições, mas cuja marca mais profunda é aquela que acompanha o rosto e os passos de Jeanne Moreau. E, desde o genérico inicial, desde o telefonema em que Florence e Julien trocam juras de amor na impossibilidade de pousarem as mãos nos corpos um do outro, Miles torna-se quase uma sombra de Florence – do seu desejo, da sua sufocação a gritar por liberdade e do seu coração amarrotado.