“Sei tanto agora que tenho quase cem anos como quando tinha dois”
O mundo apresenta-se como uma imensa tela em que cada indivíduo pode não passar de um espectador. O pensador alerta para o perigo de estarmos fixados na imagem sem interpelar a vida. Conversa que teve Portugal como partida. Aos 94 anos, Eduardo Lourenço persegue a reconciliação com o mundo.
A palavra mais presente nos títulos do PÚBLICO ao longo do último ano foi Portugal. Quando sabe disso, Eduardo Lourenço sorri. “Seria assim desde o Afonso Henriques, se nessa altura houvesse jornais”. Diz isto enquanto caminha, passos miúdos e olhos a brilhar de ironia face à fixação de um país consigo mesmo, a tudo o que isso lhe sugere no dia de uma celebração que ele mesmo lembra: “Todos os jornais hoje assinalam que faz um ano que Portugal foi campeão europeu. Coisa séria!” E aí já não há ironia no olhar. Em vez disso fixa os olhos de quem o ouve à procura de entendimento. “Estas coisas são importantes e podemos discuti-las, devemos.” E continua a caminhar em direcção ao terraço da Fundação Calouste Gulbenkian, num dia de muito sol e vento, à hora em que passam muitos aviões, imagem a remeter para a visão paradoxal que este pensador tem do seu país. Um país que foi vendo à distância, da aldeia onde nasceu há 94 anos, ou do Sul de França onde viveu muitas décadas. A literatura aproximou-o desta geografia e da tentativa de a entender. Isso e a sua invulgar tendência para não dizer “não” sempre que lhe pedem para conversar. É de Eduardo Lourenço a deixa para início de uma conversa que era para ser quase só sobre Portugal...
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
A palavra mais presente nos títulos do PÚBLICO ao longo do último ano foi Portugal. Quando sabe disso, Eduardo Lourenço sorri. “Seria assim desde o Afonso Henriques, se nessa altura houvesse jornais”. Diz isto enquanto caminha, passos miúdos e olhos a brilhar de ironia face à fixação de um país consigo mesmo, a tudo o que isso lhe sugere no dia de uma celebração que ele mesmo lembra: “Todos os jornais hoje assinalam que faz um ano que Portugal foi campeão europeu. Coisa séria!” E aí já não há ironia no olhar. Em vez disso fixa os olhos de quem o ouve à procura de entendimento. “Estas coisas são importantes e podemos discuti-las, devemos.” E continua a caminhar em direcção ao terraço da Fundação Calouste Gulbenkian, num dia de muito sol e vento, à hora em que passam muitos aviões, imagem a remeter para a visão paradoxal que este pensador tem do seu país. Um país que foi vendo à distância, da aldeia onde nasceu há 94 anos, ou do Sul de França onde viveu muitas décadas. A literatura aproximou-o desta geografia e da tentativa de a entender. Isso e a sua invulgar tendência para não dizer “não” sempre que lhe pedem para conversar. É de Eduardo Lourenço a deixa para início de uma conversa que era para ser quase só sobre Portugal...
Não consigo dizer que não. É uma questão ontológica. Custa-me muito dizer não quando sou solicitado para uma conversa. Corresponde a um interesse dos outros por nós e a uma espécie de recusa tácita de ser objecto de um interesse que nunca me parece justificado.
Pensa que o interesse das pessoas por si não é justificado?
Cada vez mais.
Porquê?
Porque estou saindo. Eu nunca ocupei palco.
Mas foi sempre chamado.
Acontece. Neste país em que todos estamos próximos uns dos outros é fácil conhecer praticamente toda a gente. A minha mulher, que era francesa, dizia com certa ironia que era fácil perder aqui a cabeça. Felizmente eu tinha saído lá para fora.
Isso ajudou a não haver deslumbramento?
Ajudou-me a ter uma dupla vista sobre o que poderia ter sido o meu destino se tivesse ficado só em Portugal. Nós precisamos de um espelho o mais diferente possível de nós para poder medir melhor do que somos e não somos capazes. Agora já não há reis, há ainda menos fadas, mas há revistas cor-de-rosa. As fadas faziam parte da educação da infância, simbolizavam coisas que não existem, irreais. Agora toda a gente ocupa o lugar das fadas e se não tiver uma capa dessas revistas pensa que não existe. Isto não é uma coisa portuguesa, é genérica. Estamos em plena cultura de imagem. Não é de agora, terá vindo do século da fotografia. Foi uma revolução de consequências infinitas e esta é o prolongamento da outra. Hoje podemos estar uma vida inteira a ver cinema, televisão ou um ecrã e morrer sem ter entrado na vida. Somos mais do que perecíveis, a todo o instante, mas a ideia de que podemos passar a maior parte da nossa vida ao lado de coisas interessantes para visitar, para nos apossarmos, com que nos interrogarmos ou sermos interrogados... Estarmos morbidamente fixados a esta paixão pela imagem devora-nos vivos.
Não o surpreendeu que a palavra Portugal fosse a mais escrita nos títulos.
Não. Isso tem uma explicação. Portugal não é uma ilha, mas vive como se fosse. Talvez por uma determinação de quase autodefesa. O que me admira mais não é a preocupação constante que temos em saber qual é a figura que fazemos no mundo enquanto portugueses. Todos os países terão à sua maneira essa preocupação. É o excesso dessa paixão. É preciso que não estejamos sempre a viver um Ronaldo colectivo, um “nós somos o melhor do mundo”.
Precisamos disso porquê?
Acho que não precisamos. Não sei. Ou é falta de imaginação ou a ideia de que só existimos quando de repente nos dizem que somos os melhores. Provavelmente, a figura capital da raça humana é Narciso. Narciso é uma espécie de defesa, alguém que não se pode debruçar demasiado sobre a sua imagem sem que isso lhe seja fatal. O narcisismo português, para mim, é um narcisismo inocente; ninguém pensa que vai morrer no espelho. Mas às vezes acontece.
Há uns anos disse que a História se escreve como uma ficção. Quais são os traços principais desta ficção que é a História de Portugal?
A ficção portuguesa consiste no quase abismo que separa as capacidades normais de um país para se afirmar entre os seus, primeiro na Europa e depois no mundo. Essa afirmação teve no nosso caso uma singularidade. Fomos os primeiros que largámos da Europa para ir para um sítio mítico, só conhecido através de novelas, como as de Marco Polo. De repente, deslocamo-nos do ocidente europeu e demos a volta a África — demos..., deram eles, os navegadores, porque eu não tenho um pé marítimo propriamente dito — para chegar à Índia. E foi como chegar a outro mundo, descobrir outro planeta, e durante praticamente dois séculos a nossa capital era mais fora de nós do que dentro de nós. E sempre nos habituámos a que essa imagem que adquirimos num lá fora hipermítico fosse tão universal que ninguém podia não saber que nós lá tínhamos chegado.
A partir daí começámos a ter uma imagem de nós como país visível quando os outros, maiores, não eram visíveis. Uma visibilidade mítica que nos foi dada a nós, peninsulares, primeiro pela chegada à Índia e depois pela viagem à volta do mundo. Estão-se a celebrar os 500 anos da viagem de [Fernão] Magalhães. Espero que por esta ocasião Espanha e Portugal se reconciliem para sempre na celebração de um feito único que está escrito nas estrelas. Magalhães é o único que tem o seu nome nas constelações. Está a ver a diferença entre Magalhães e as estrelas mais cadentes que neste mundo queriam ter a mesma visibilidade? A história da humanidade e a história da sua paixão por aquilo que a ultrapassa.
Conhece Portugal em períodos muito diferentes da História. O que é que mudou neste país no tempo da sua vida?
Essa pergunta é séria. Mudámos muito. Refiro-me fundamentalmente às últimas mudanças. Com a Revolução de Abril, o fim da Guerra Colonial, o país reconquistou uma situação na ordem política parlamentar que vinha do liberalismo. Durante o período do Salazar houve entorses profundos em certas áreas. Foi preciso o fim da II Guerra Mundial para que os portugueses se dessem conta de que a nossa situação, que até então parecia edificante e admirável — e admirada até —, não correspondia às novas exigências depois do triunfo das democracias. E a guerra de África determinou o nosso destino de outra maneira, pôs fim ao longo império de mais de 500 anos, perdemos o famoso império. A questão é saber em que medida é que o tivemos, ou em que medida era um império tão real para nós e tão vivido, como miticamente alguma literatura e alguma poesia mitificou, entre elas a maior mitificação e a última feita por Fernando Pessoa. Já não se podem escrever peças líricas sobre aqueles que morreram por esse império.
Isso é bom ou mau?
É a vida. É a História. E temos de viver isso como qualquer coisa mais do que um ressentimento. As colónias, os colonizados, tiveram a sua hora de afirmação. Era natural que se emancipassem. Nós, e a maior parte dos colonizadores europeus, prolongámos esse império para ser sem fim, prolongámos a supremacia europeia durante mais tempo do que ela era capaz. Hoje mudámos de paradigma, a Europa já não é o centro do mundo, mas também não é a periferia. Será sempre um objecto de meditação, de evocação, de nostalgia certamente. Porque uma parte da civilização europeia foi o paradigma de outras civilizações, mesmo de algumas anteriores à Europa. Eu disse a certa altura que somos os aposentados da História, mas sermos os aposentados da História não me parece assim muito justo. Estamos sempre no futuro, o passado não determina de maneira fatal o nosso progresso e realiza os nossos sonhos. O homem é, por essência, alguém que vive dos sonhos maiores do que ele.
Como acha que está a ser escrito o presente português?
O presente está a atravessar uma situação muito curiosa, coisa ocasional, é certo, mas estranha. Conheceu, depois da eleição do novo Presidente, e mesmo do novo Governo, um grande momento de relativo consenso na maneira como nos aceitamos, agora que temos a possibilidade de resolver democraticamente os conflitos que uma nação moderna tem de encarar. Mas estávamos nós nesta grande euforia, quando de repente, de uma maneira incompreensível, mas sobretudo dramática, fomos atingidos por uma tragédia [das mortes nos incêndios no Centro do país]. E acho que o país até reagiu bem, na sua relativa sobriedade. Mas não se pode reagir bem a uma tragédia, não se pode evacuá-la, ela está lá. É inútil estar agora a pedir contas. Mas fosse como fosse, temos de superar esse trauma. E acho que estamos em condições de o fazer.
Temos?
Mais difícil é resignarmo-nos a coisas de outra ordem, como esta de que se fala, o roubo de armas em Tancos. É para ser julgada. Continuo na minha, essas coisas deviam ser discutidas na instância própria e essa instância é o Parlamento. Num estado democrático, é ali que as coisas devem ser discutidas e não de noite e de dia na televisão. A televisão é um complemento natural, o eco de tudo quanto se passa. Mas neste momento as televisões são verdadeiras tribunas onde as coisas já estão julgadas antes de serem julgadas. Isso não é bom para a democracia.
Vamos ao colectivo, à celebração colectiva de que falava antes de ligar o gravador?
Nós não temos o culto do indivíduo tão característico da modernidade desde que ela se manifesta, a partir do Renascimento. Provavelmente porque, durante séculos, as nossas referências foram fundamentalmente de ordem religiosa, numa religião que era a referência unânime, não só dos comportamentos de ordem ética, moral e transcendente. Isso dava uma espécie de coerência e sentido de participação. O país tinha uma norma. A modernidade trouxe a laicização e a discussão, mas enfim... Hoje [dia 10 de Julho], parece que faz anos que os portugueses ganharam aos franceses, ainda por cima aos franceses. Foi muito interessante essa história. De facto é uma grande alegria, alegria máxima. O futebol não é só uma paixão portuguesa. É quase universal. Mas o muito interessante não foi a nossa euforia, que era normal, até pela sua pouca probabilidade de se realizar. Mais um milagre a acrescentar aos milagres em que somos experts. O mais estranho foi o inacreditável traumatismo francês.
Li com muita atenção, e os jornais franceses pareciam portugueses, ficaram numa depressão extraordinária, escrita. Escrita pelo Le Monde! Havia qualquer coisa de ofensivo nesse espanto dos franceses, quase lamúria. Faziam pena. Tínhamos roubado qualquer coisa que estava previsto que fosse para eles. Isso pode acontecer mesmo nas nações mais habituadas a criticar-se e a ter uma certa distância em relação às suas emoções mais primárias, ou mais fundamentais, o que é quase a mesma coisa. Mas aquelas páginas eram estranhíssimas. A surpresa, uma surpresa ofensiva. Se tivessem perdido com a Alemanha, calavam-se. Era óbvio, mais a mais no futebol, os países europeus jogam uns com os outros, e no fim ganha a Alemanha... Seria normal. Mas também havia ali uma coisa muito interessante, a que mais me surpreendeu e pouco me agradou: é que nós éramos aqueles que estavam na casa dos outros, os portugueses em França. Hoje integrados, mas enfim, os outros, os outros que estão ao serviço, foram para lá para servir, e de repente aquela gente, os criados, vencem a batalha e ganham aos patrões. É uma espécie de guerra de classes ao nível mais comum e rasteiro. Mesmo estas nações, que têm tantas coisas admiradas para cultivar a autoestima, a certa altura não lhes chega. Estragámos-lhes a festa. Mas as festas são para serem estragadas. Esperava que os comentários fossem mais inteligentes. Ainda bem que é o futebol, os jogos e a arte em geral que dilui a essência trágica do comportamento humano. Senão, estávamos em guerra permanente. O jogo é um exorcismo. Esgota-se — ou devia — na vitória e na derrota, aceites como tais, para que não se estrangulem no fim do jogo.
Fala do futebol e da arte em geral. Põe o futebol no mesmo plano da arte?
Não, não é exactamente a mesma coisa, mas é uma arte. Menor, será, mas tem efeitos de representação do que são os nossos sonhos, as nossas ambições, a nossa imagem de vencedores. Os homens querem ter sempre uma imagem positiva, mas sobretudo vitoriosa, de si mesmos. A Humanidade é guerreira por definição.
Dizia que esperava uma atitude mais racional...
... mais cool. É visto como uma espécie de humilhação e a gente não concebe que essas nações, com todas as vantagens, ainda se dêem por humilhadas. É demais. Deixem a humilhação para nós, que a sabemos cultivar tão bem. Com uma certa complacência, de resto.
Sempre analisou as questões da identidade a partir da literatura e sobretudo da poesia. A melhor maneira de conhecer um povo é a partir da literatura que ele produz?
Sim, a arte em geral. A literatura não tem uma função. É um efeito do que somos de mais misterioso, de mais enigmático e ao mesmo tempo de mais ambicioso. Penso que, de todas as artes, a que revela o que a Humanidade é de mais profundo e absoluto é a música. A literatura é uma música um tom abaixo. Não se explica, não é da ordem do conceito como a filosofia. É natural que os homens reservem à literatura a sua maior atenção. A literatura é o nosso discurso fantasmático, absoluto. Todas as culturas se definem pela relação com o seu próprio imaginário. A encarnação dele é a literatura.
Referiu, durante a sessão de fotografias, que falta à Europa uma coisa que os Estados Unidos têm: um livro. Enquanto portugueses, temos alguma espécie de livro?
É a única coisa de que não nos queixamos. Houve alguns momentos na história da literatura portuguesa em que Os Lusíadas não tiveram a visibilidade ou o papel que mais tarde vieram a ter, quando o Romantismo os releu e encontrou neles o fundamento da nossa perenidade mais aceitada e real — Garrett, naturalmente. Os Lusíadas nunca foram um livro popular, até porque o estado de alfabetização da nação era relativamente frágil até há quase 50 anos. Mas há uma coisa que este país sabe mesmo com um ambiente pouco letrado: Camões é o poeta nacional. Luís de Camões não é um santo propriamente dito, mas no nosso imaginário, ocupa o lugar de todos os santos.
Riu-se a dizer que Shakespeare teria adorado ter Trump como personagem. Menos épico, mais trágico e também mais humorístico do que Camões, como acha que Shakespeare olharia para este presente?
Não sei o que ele diria, o que sei é que este tempo, o tempo preciso em que estamos vivendo é um tempo não só shakespeariano, é ultrashakespeariano. A famosa luta de classes que durante mais de um século foi objecto das nossas considerações e preocupações já não é do mesmo tipo da que foi até à queda do muro de Berlim. De repente, há uma desestruturação das diversas potências que pretendem ocupar o lugar da potência única que cada um deseja. Neste momento, coisa que parecia impossível há 40, há 30 anos, aparece no mundo uma perspectiva apocalíptica que aparentemente é da ordem da ficção, qualquer coisa para filmes de Hollywood. Um deslize, um ataque, uma bomba a mais, um foguetão absurdo a cair no sítio errado — tudo pode levar-nos para um começo de qualquer coisa parecida com o apocalipse. Seria pena, porque a Terra não merece este género de sonhos mal sonhados. Shakespeare é um caso. Foi uma segunda reeinvenção num tempo que em princípio já não era o tempo da tragédia. A diferença é que a tragédia nasceu num mundo em que a invenção cristã ainda não tinha acontecido. Shakespeare aparece e surge para descrever tragédias já no interior do mundo condicionado pela visão cristã. Penso que é por isso que a obra dele não só é fantástica do ponto de vista literário, mas como obra de um profeta moderno. Na nossa cultura, na mais popular, aparecem sempre umas figuras com uma aura, espécie de loucura, santa ou profética, antecipando o futuro. São de algum modo Cassandras, mesmo quando são homens. Hoje quaisquer dos grandes autores são profetas, mas são tão banais, porque são tantos, que não têm o papel que as figuras míticas da antiguidade e mais modernas tiveram. Mas penso que cada geração reencontra outra maneira de reescrever o que Homero, Dante, Camões e outros já escreveram. Como Pessoa. Pessoa é um bisneto de Shakespeare. Ele é incompreensível sem as leituras de Shakespeare. Mesmo se não soubéssemos, bastaria consultar o seu volume de Shakespeare. Tudo está sublinhado. A Bíblia dele foi Shakespeare.
Ao longo da sua vida, a ideia da vida enquanto enigma foi crescendo?
É agora maior do que nunca. Tudo me parece mais enigmático do que aquilo que eu pudesse sonhar que fosse. Estamos confrontados com qualquer coisa para a qual não há espécie nenhuma de reposta, ou se há é de uma outra natureza que as pessoas têm pudor de confessar, aquilo que não pode ser dito.
Uma experiência próxima do religioso?
O religioso é onde tudo se desenha, mesmo quando não sabemos. Isso que nos está falando sem nos falar.
Ser português, o que é que esta expressão faz ecoar em si?
Não tenho obsessão por Portugal. Quando se nasce numa aldeia naquele tempo, Portugal não está à vista. Ser português, então, é falar português, ter uns certos hábitos que vêm do fundo dos tempos. É estar confinado num sítio incógnito, pouco visto, pouco sabido dos olhos do mundo; é estar isolado e ser feliz.
E o que é ser feliz?
Nada. Viver nesse espaço que foi o espaço da inocência.
Há pouco confessava que nunca fez planos para si. Não falando de planos, o que é que gostava de fazer?
Ter algum tempo para reunir coisas dispersas, pensamentos, notas.
Isso também é ontológico?
É ontológico. Nunca sabemos o que verdadeiramente nos move. Gostava de acabar os dias reconciliado com o mundo, e sobretudo saber que mundo foi este em que vivi e o que é a vida. Sei disso tanto agora que tenho quase cem anos como quando tinha dois anos.
O que é que esse número lhe diz?
Que é bom deixar uma margem para não tropeçar no que cada um diz, pensando resolver o enigma.