Adeus aos versos
O mundo, entretido na sinistra fanfarra do seu próprio cortejo fúnebre, dita o fim dos versos de uma das poesias mais poderosas da actual literatura portuguesa.
José Miguel Silva não é um novo Chandos. Não pretende, portanto, dizer, como a criação de Hofmannsthal, “perdi por completo a faculdade de pensar ou de falar consequentemente sobre o que quer que seja” (A Carta de Lord Chandos, trad. Carlos Leite, Hiena, 1990). Nem sequer escudar-se no álibi de inculpar a falência das próprias palavras, na sua incapacidade de dizerem um real fugidio e deslaçado, para lá de qualquer coerência — “tudo se decompunha em fragmentos que por sua vez se fragmentavam, e nada se deixava possuir por um conceito” (id.). Tão-pouco se trata, no seu caso, de uma limitação do próprio idioma, como em Mallarmé: “As línguas são imperfeitas, na medida em que são várias, falta a suprema” (Crise de Versos, trad. Pedro Eiras e Rosa Maria Martelo, Deriva, 2011). Pelo contrário, a formulação que surge deste o título de Últimos Poemas afirma inequivocamente um encerramento de actividade que antepôs a ética à estética — se for possível separá-las perante uma poesia como a de José Miguel Silva. Uma poesia que sobrepôs a política à poética, ainda mais neste derradeiro título do que nos anteriores — uma vez mais, se é legítimo desagregar duas vertentes tão inextricáveis na produção deste poeta.
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José Miguel Silva não é um novo Chandos. Não pretende, portanto, dizer, como a criação de Hofmannsthal, “perdi por completo a faculdade de pensar ou de falar consequentemente sobre o que quer que seja” (A Carta de Lord Chandos, trad. Carlos Leite, Hiena, 1990). Nem sequer escudar-se no álibi de inculpar a falência das próprias palavras, na sua incapacidade de dizerem um real fugidio e deslaçado, para lá de qualquer coerência — “tudo se decompunha em fragmentos que por sua vez se fragmentavam, e nada se deixava possuir por um conceito” (id.). Tão-pouco se trata, no seu caso, de uma limitação do próprio idioma, como em Mallarmé: “As línguas são imperfeitas, na medida em que são várias, falta a suprema” (Crise de Versos, trad. Pedro Eiras e Rosa Maria Martelo, Deriva, 2011). Pelo contrário, a formulação que surge deste o título de Últimos Poemas afirma inequivocamente um encerramento de actividade que antepôs a ética à estética — se for possível separá-las perante uma poesia como a de José Miguel Silva. Uma poesia que sobrepôs a política à poética, ainda mais neste derradeiro título do que nos anteriores — uma vez mais, se é legítimo desagregar duas vertentes tão inextricáveis na produção deste poeta.
A quem tenha acompanhado as reflexões de JMS no blogue que mantém (Achaques e Remoques), dificilmente poderá ser estranha a cessação. Muito mais do que “as hostes das odes” (Akhmatova), têm preocupado este poeta o descalabro do mundo às mãos cúpidas do mais carnívoro capitalismo, a consumpção feroz dos fugitivos recursos naturais ao dispor, sacrificados por um sistema estupidamente cego e voraz. Uma opção a que os versos de Últimos Poemas não deixarão de responder. Desde o primeiro poema do breve volume, Lamento e Exortação, que assim é, de resto: “a Gloriosa Era da Literatura Ocidental chegou ao fim, derretida (como sugere/ o seu acrónimo) pelo aquecimento da sandice/ global, que não viemos aqui para tentar/ reanimar o moribundo, mas alegrar um velório” (p.7). Uma nota que soará ao longo de Últimos Poemas, até ao poema que encerra o livro, simplesmente intitulado Fim — e dedicado a Gail Tverberg, uma activa investigadora dos finitos recursos naturais do planeta.
Na mais longa das composições da sua recolha derradeira, é um antecipado dobre a finados pelo planeta que José Miguel Silva faz soar nestas impecáveis (e implacáveis) sétimas, que têm o rigor sobriamente clássico de expressão e intencionalidade comunicativa que tem sido dos mais importantes timbres da sua poesia — “Enquanto confundíamos o belo/ com o fácil e o fácil com o bom,/ numa sociopatia de narcisos/ viciados em picões de dopamina,/ a nossa casa natural apodrecia/ como o ventre das abelhas quando passa/ o glifosato da ganância liberal.” (p.40) Até lá, são vários os exemplos que, neste livro, demonstram até que ponto fazem sentido as declarações que o poeta prestava, há seis anos, por altura da publicação o seu anterior livro de originais (Erros Individuais, Relógio D’Água, 2010 [entretanto, JMS reeditou, de forma revista, Ulisses já não Mora Aqui, Língua Morta, 2014]), em entrevista concedida a João Bonifácio para este jornal. Nessa altura, José Miguel Silva aceitava menos reticentemente posicionar-se “sob a etiqueta de poeta político do que de poeta realista”. Talvez o mais impressivo desses poemas seja a admirável parábola contida em Grande Circo de Montekarl — “Não gosto especialmente de circo, mas como não há mais nada/ e uma pessoa tem de se entreter com alguma coisa, cá vim./ Confesso que me atraiu sobretudo o número da Grande/ Conflagração do Capitalismo, anunciado a letras vermelhas/ no cartaz. A questão que se põe é: a que horas começa?” (p.27) Uma visão da catástrofe tenuemente distorcida pela construção verbal de um espectáculo circense de difícil ou impossível acesso, que entedia de morte quem aqui fala, e é tão mais do que o redutor sujeito poético. Porque, mesmo sem se assumir arauto de coisa nenhuma, se põe de pé no bote exíguo de todos.
Sublinhe-se, entretanto, que a convocação, que ao início se fez, dos nomes de Hofmannsthal e Mallarmé não era simples associação ociosa. José Miguel Silva é (foi?) um dos poetas portugueses mais duramente cientes do património literário (e outro) de que a humanidade tem sido capaz. Mas o advérbio (“duramente”) não se deve perder de vista. A poesia de José Miguel Silva é das que rejeitam, com acinte, qualquer argumento de autoridade e que se mede em pé de igualdade com mestres e outros praticantes do ofício. Em tudo isto, seria útil recordar um texto publicado por JMS, há dez anos, num dos vários blogues que o autor manteve (neste caso, Ad Loca Infecta, um título que prestava tributo a Jorge de Sena). Espécie de biblioclasmo à dimensão doméstica, “Notícias da Frente Bibliotecária” increpava a acumulação desmedida de títulos “dispensáveis” numa biblioteca pessoal: “os demasiados livros que se acumulam numa casa: os tantos, os feios, os tontos, os zeppelinianos, os rés-do-estilo, os rés-do-estalo, os assim-assim, os engraçadinhos e os chatos (já para não falar nos idiotas e nos da puta, que também os há), a esses cada vez os suporto menos. Este nobel ensaísta russamericano, por exemplo, é entrevistado ao longo de 440 pág. e só lhe ouvimos um blá-blá misticóide que não aquece (nem arrefece) meia salsicha. Não é irritante ter um livro destes em casa? É. Não apetece pô-lo na rua? Claro. E como tal centenas de outros.” Neste libelo, já estava essa mesma rude franqueza, o desapego tão fortemente consciente, mas também uma estima inteiriça, sem ademanes — que a poesia de José Miguel Silva sempre demonstrou. Caso de um poema como Marcel Proust, de Últimos Poemas: “Egomaníaco, mais um. Escrevia o seu nome em todas as coisas,/ era uma obsessão que ele tinha./ Não podia ver um seixo, um ovo,/ uma casca de melão — deitava-lhes/ a mão e escrevia ‘Marcel Proust/ esteve aqui.’ Mas isso não é nada./ Incrível foi ter passado os últimos anos da vida a esculpir/ a bisturi o seu retrato num penhasco.” (p.16) A poesia, nestes versos, não é simples exercício virtuosístico, ainda que não deixe, por completo, de o ser: a tensão de sentido gerada pelos encavalgamentos, a poderosa metáfora que une, em admirável equilíbrio, um instrumento de corte finamente preciso, a rudeza impassível da pedra e o funambulismo do auto-retrato. Mas o poema é, aqui, sobretudo, questão firmemente declarativa de pontos de vista, posições que recusam meias tintas, cambiantes neutros, ou cor de burro quando foge. Estes versos afirmam, sem contemplações pela cortesia, nem pela pompa. Fixando, por exemplo, a sua atenção num “primeiro livro” (p.10) da sua constelação pessoal, o poeta descreve Os Dados Estão Lançados, de Sartre, como “súbita/ roldana, fornecida por acasos que desmentem/ a balela do destino” (id.). Uma proposição que fará o seu reconhecimento num terreno simultaneamente social (político mesmo) — na descrição de um meio onde os primeiros livros são “rastilho dum rizoma movediço” (id.) — e individual. Sem perda de tensão, nem entrada nos corredores bafientos do confessionalismo.
Na poesia de José Miguel Silva, nada se submete apenas à empáfia de qualquer função poética, nem cede ao canto de sereia da pura estesia. Um poema como “Parte Poética”, por exemplo, muito mais do que o jogo de palavras que o título não deixa de configurar, firma, acima de tudo, um pacto político de lealdade para com o (descalabro do) mundo — “Não é fácil ser poeta a tempo inteiro./Eu, por exemplo, nem cinco minutos/ por dia, pois levanto-me tarde e primeiro/ há que lavar os dentes, suportar os incisivos/ à face do espelho, pentear a cabeça e depois,/ a poeira que caminha, o massacre dos culpados,/ assistir de olhos frios à refrega dos centauros.” (p.9) O perseverante contraponto entre a matéria do “eu” e a que pertence ao “nós” impede a cada momento que o poema descambe na leitura ensimesmada de si ou de quem o escreve. Se os versos começam por contemplar a (p)arte de ser poeta, depressa o solipsismo não é sequer uma sombra, breve ameaço. Em breve, será “o estrondo das notícias”, que se fará ouvir, o “simulacro do desastre” e, por fim, “um dia de estrume para roseira nenhuma” (id). Porque este é um poeta, enfim, numa rodagem totalmente adversa a qualquer romantismo ou revivescência dele, dolorosamente atento ao mundo, o qual diz da forma mais inexorável, sem nunca abdicar da firmeza de uma verbalização inatacável — “a bolha esburacada da democracia// a corrente de facadas e suturas/ a que chamamos progresso,/ o beco sem saída da evolução” (p.31).