O mundo violento e frágil de H. G. Cancela
Autor de quatro romances e dois ensaios, construiu um universo visceral, incómodo, que nos interpela sem dó acerca dos nossos limites. As Pessoas do Drama encosta-nos a esses limites. Um teste à resistência.
A conversa começa pelo silêncio. Nesse silêncio, de um homem, escritor, existe perplexidade e a convicção de que não há palavras capazes de o preencher. “Aquilo que mede o som talvez seja incapaz de registar o silêncio”, escreveu no seu último romance, As Pessoas do Drama (Relógio d’Água), e a frase parece reflectir-se no seu olhar quando se lhe pergunta como vai o seu livro. “Não vai”, ou seja, vai existindo, silencioso, o que é uma forma de não existir. Ao quarte romance, e depois de ter sido finalista do prémio da APE com o terceiro, Impunidade (Relógio d’Água, 2014), H. G. Cancela (n. 1967), nome literário de Hélder Gomes Cancela, permanece quase desconhecido para maioria dos leitores. “Há a crítica que não avalia e a que avalia por omissão. Actualmente quase tudo é avaliado por omissão, criando uma espécie de limbo simbólico. O infra criticável é uma espécie muito perversa de avaliação, é silêncio. Não podemos contra-argumentar com o silêncio. Contra um insulto, sim, podemos reagir. Mas não podemos reagir dentro do silêncio. Em relação ao Impunidade o silêncio foi quase absoluto.”
A verdade faz-nos mais fortes
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A conversa começa pelo silêncio. Nesse silêncio, de um homem, escritor, existe perplexidade e a convicção de que não há palavras capazes de o preencher. “Aquilo que mede o som talvez seja incapaz de registar o silêncio”, escreveu no seu último romance, As Pessoas do Drama (Relógio d’Água), e a frase parece reflectir-se no seu olhar quando se lhe pergunta como vai o seu livro. “Não vai”, ou seja, vai existindo, silencioso, o que é uma forma de não existir. Ao quarte romance, e depois de ter sido finalista do prémio da APE com o terceiro, Impunidade (Relógio d’Água, 2014), H. G. Cancela (n. 1967), nome literário de Hélder Gomes Cancela, permanece quase desconhecido para maioria dos leitores. “Há a crítica que não avalia e a que avalia por omissão. Actualmente quase tudo é avaliado por omissão, criando uma espécie de limbo simbólico. O infra criticável é uma espécie muito perversa de avaliação, é silêncio. Não podemos contra-argumentar com o silêncio. Contra um insulto, sim, podemos reagir. Mas não podemos reagir dentro do silêncio. Em relação ao Impunidade o silêncio foi quase absoluto.”
Está sentado à grande janela do café do Teatro Gil Vicente, em Coimbra. É uma tarde tranquila de Julho, há poucos carros na rua, pouca gente na praça. Nada ali lhe diz muito. É só o lugar mais conveniente entre o Porto, onde dá aulas na Faculdade de Belas Artes, Oliveira do Hospital, onde vive, e Lisboa onde nunca viveu. A pergunta seguinte é se esse silêncio o magoa. “Um escritor escreve para ser lido. Apesar de eu não fazer cedências no que diz respeito à intensidade da escrita, a alguma densidade conceptual, respeito o leitor. Não proponho nenhum tipo de enigma indecifrável. Tenho muita consciência da diferença abissal entre o investimento intelectual de quem escreve e de quem lê. Ou seja, deve haver por parte de quem escreve a consciência de que escreve para alguém que lhe vai prestar relativamente pouca atenção face a todo o investimento que fez. Desse ponto de vista nenhuma escrita é compensadora em termos de reconhecimento efectivo. Beckett falava de novela e textos para nada. De alguma maneira escreve-se sempre para nada. Mas se magoa? Magoa um pouco.”
Autor de quatro romances, dois livros de ensaios, conseguiu construir um território ficcional marcado pela exploração dos limites do humano. A dor, a culpa, a moral, a solidão, a sexualidade, a violência, a fragilidade ou a rudeza, a identidade enquanto competência para encadear palavras de um modo capaz de gerar um sentido original. “Para mim o essencial na literatura, no romance, é a construção de um espaço narrativo, a construção mesmo de um mundo. O mundo onde estamos e a partir do qual a realidade pareça verosímil, mesmo a mais inverosímil”, salienta, referindo que tanto As Pessoas do Drama quanto Impunidade “são vagamente inverosímeis”, mas o que pretendeu foi tornar aquilo que é objectivamente inverosímil não apenas viável no plano narrativo como verdadeiramente credível. O que é credível? O olhar que é projectado”.
Pessoas que falharam
Não é por acaso que o escritor fala em conjunto do terceiro e do quarto romances. Funcionam autonomamente mas fazem parte de um contínuo narrativo. O fim de um deu a pista para o início do outro. “Depois, no esplendor das coisas ameaçadas, voltámos para trás. À minha frente, um muro.” Podia ler-se assim. Pode. Mas um livro separa uma frase da outra. “À minha frente, um muro” é o arranque de As Pessoas do Drama, livro que nasce da obsessão de um homem pela imagem de uma mulher, uma actriz. “Há um contínuo, mas é um contínuo paradoxal, na medida em que há um conjunto de situações anteriores admissíveis, que poderiam transitar, e outras que não são compatíveis. Há uma relação de corte. Foi escrito para ser lido como objecto autónomo”, refere, acrescentando que quando terminou Impunidade essa intenção de conjunto não existia.
O impulso foi a última frase, o resto não sabe bem. “O ponto de partida foi um homem que vê uma mulher num filme, ou seja, vê uma mulher mediada pela representação cinematográfica, a imagem torna-se obsessiva e vai à procura dela. É uma imagem que se cruza com o interdito do toque” - outra ideia subjacente ao um romance que assenta na relação entre espectador e actor, espectador e obra de arte, o que pode ser visto mas não pode ser tocado. “Ninguém nasce espectador, todos pensam que nasceram para tocar, para possuir, para agredir. Aceitar ser espectador é resignar-se à impotência”, diz Filippo, personagem de As Pessoas do Drama, encenador, homem falhado, como é falhado o narrador, o que persegue a imagem. “Estamos perante uma personagem humanamente falhada. O romance está atravessado por pessoas que falharam. Talvez como nós. O que conseguimos é sempre uma espécie de negociação permanente com aquilo em que falhamos”, sublinha Cancela.
Todas as personagens conhecem a falha, mas há quem se resigne menos. Caso de Laura, a actriz, objecto de desejo na vida e no palco que se sente enquanto tal no palco e na vida, que não sabe distinguir entre uma coisa e outra, ou melhor, talvez saiba melhor os papéis que tem de ter no palco do qual o seu papel na realidade. Ela existe no palco, para ser vista, como as peças no museu. E agora, no palco, ela é Antígona. “Uma Antígona cega e grávida”, esclarece H. G. Cancela. Porquê a Antígona? “Primeiro porque a Antígona não era cega, era o pai que se tinha cegado; segundo porque a Antígona não estava grávida; pelo contrário, personificava a pureza e a piedade tal como era entendida no mundo clássico. Quis pagar nesse texto para o transfigurar apresentando uma personagem que sendo Antígona não pode sê-lo.”
É uma narrativa com um narrador que fala na primeira pessoa, a única personagem sem nome num teatro que vai buscar referências à tragédia grega, com as vozes a funcionarem como coro. “Alguns textos do teatro grego fazem parte da minha herança cultural. A determinado momento era preciso que houvesse uma peça e um encadeamento narrativo no interior do qual estaria uma actriz. Fazia sentido”, justifica o escritor que sempre escreveu ficção na primeira pessoa. Este livro não foi excepção. “Trata-se de definir que estamos perante um olhar condicionado e não diante de um narrador que sabe tudo, que nos mostra o mundo como ele é. Aqui estamos diante de um narrador que nos mostra o mundo como ele o vê. Esse ponto de vista parece-me intelectualmente muito mais honesto. Só isso.”
A capacidade de transfigurar
H. G. Cancela não tem pressa nas respostas, hesita, assume incertezas, procura acertar nas palavras como se estivesse a escrever enquanto fala. Devagar. “Escrevo devagar”, sorri. Diz que não gosta da palavra arte, mas que à falta de melhor, usa-a. Inscreve a literatura nessa categoria enquanto procura a sua essência. “Se há alguma coisa que possa ser a função das artes na actualidade é a capacidade de experimentar os valores. Aquilo que não é legitimo no plano político ou no plano social é desejável no plano artístico. Se a arte não é um espaço de experimentação, de encostar o mundo aos seus próprios limites, então não sei para que serve a arte.” O seu trabalho segue essa busca. Incomoda, testa sensações, provoca-as sem que isso seja alguma vez percebido enquanto tal. Decorre do tal encadear narrativo, a teia de um mundo onde o mais implausível se torna possibilidade. Uma Antígona com uma venda nos olhos e grávida é uma espécie de guia para esse território atravessado por um bebé. Se a imagem de uma mulher no ecrã foi a ideia de partida, a de chegada era o bebé. Porquê? “como instrumento de troca. De chantagem afectiva, de fixação ou objectificação dos conflitos entre os diferentes personagens”, responde. “O resto foi uma construção que tentou dar espessura, densidade e tornar verosímil todo aquele encadeamento.”
Quem leu Impunidade é convidado a entrar numa dimensão mais interior, íntima, ainda que haja um palco. Há uma violência menos explícita, mas o mesmo cuidado com a linguagem, o respeito por uma gramática que tenta ajustar-se aos corpos e não quer transgredir com a da língua. “O que distingue a literatura é a forma de ser exigente com a própria linguagem. A capacidade de pedir à linguagem o que ela pode dar, na maior parte dos casos a capacidade de construir a linguagem com que se escreve. Os escritores que mais admiro são aqueles capazes de se apropriar de tal modo de um património como o linguístico para o transfigurar. Um caso espantoso é o do Sebald que é capaz de nos pôr a ler maravilhados sobre a mais anódina das experiências. O que nos importa não é a efabulação narrativa; é o detalhe do olhar, a atenção e a capacidade de transpor isso para um encadeamento linguístico, verbal. Isso é precisamente o que transforma um texto em literatura. Isso é a capacidade de transfigurar.”
Cancela persegue isso. Confessa alguma satisfação quando percebe estar perto, mas recusa falar em êxtase, por mais momentâneo. É natural ficar-se satisfeito diante de um encadeamento de palavras, sentir que funciona, que é operativo. "Um texto deste tamanho [aponta para o livro em cima da mesa] é um encadeado tremendo de avanços, recuos. A tentativa é manter fôlego e convicção”, afirma, assumindo uma posição mais convencional quanto a subverter a gramática para conseguir um efeito. “Tenho muitas reservas às abordagens ditas experimentais à linguagem verbal. Toda a poesia experimental dos anos 60 e 70 já desconstruiu com resultados razoavelmente sofríveis. São curiosidades intelectuais na maior parte dos casos. Espantosamente, depois de termos assistido a um século inteiro de desconstrução do olhar através das diferentes formas de arte, a desconstrução da experiência da música em numerosas vanguardas, assistimos a uma extraordinária resistência da linguagem verbal a essas tentativas de desconstrução. Porque a desconstrução tem de ser feita em outro plano. Não estou aqui a fazer uma apologia de retorno à ordem, mas verificamos que os exemplos mais conseguidos são os que admitem as regras para trabalhar no interior das regras. É o que este romance faz. Admitir as regras da construção romanesca. Há personagens, uma situação, um conjunto de relações espaço-tempo, conflitos emocionais, indagações intelectuais, mas no interior de gramáticas razoavelmente consolidadas. A subversão tem de agir no interior da regra. Qualquer subversão tem de se produzir a partir do interior. A subversão da gramática tem de se produzir no interior da gramática da mesma maneira que a subversão da moral se produz no interior da moral. Não há um espaço agramatical; não há um espaço amoral.”
Confirma que sempre quis ser escritor. Começou por ler tudo o que havia para ler, “com a percepção de que se vai ler tudo o que há para ler”, diz, sem saber que depois “há o momento da consciência, do tempo e de que nem tudo interessa”. Assume influências. “Há livros decisivos. Lembro-me de um, do Claude Simon [Nobel da Literatura em 1985], O Vento. Foi decisivo. Há uma tradução em português assinada pelo Mário de Cesariny. Foi marcante. Tinha 15 ou 16 anos, quando li. E há o Faulkner! Depois acrescento a Duras, a Woolf, a Colette. Em português destaco o João Miguel Fernandes Jorge, o maior escritor português vivo. E Gonçalo M. Tavares.” Ainda Rui Nunes e mais poetas. Daniel Jonas, Bénédicte Houart, Diogo Vaz Pinto.
“A língua portuguesa é o único bom motivo para que a Ibéria não seja um país”, refere depois de uma pausa a olhar a praça da República. E retoma a conversa no ponto de partida: ser escritor. “Foi uma decisão consciente. A opção por estudar Filosofia foi determinada pela vontade de escrever. Filosofia é uma disciplina de exigência de pensamento. Não senti que precisasse que me ensinassem a ler literatura, mas precisava que me ajudassem a aprender a pensar. N sei se aprendi, mas tenho para mim que a minha formação em Filosofia foi determinante naquilo que é o modo como escrevo. Não significa que procure fazer filosofia. Há uma distinção de planos, de abordagens. O modo como se faz pensamento ao nível do romance é distinto do modo como se faz na literatura. Mas correspondeu a uma vontade determinada de escrever. E depois descobre-se que a literatura é um extraordinário organizador de experiência e um espaço de construção da nossa própria identidade. O autor constrói-se através do processo de escrever, é a escrita que suporta a construção da sua identidade. Trata-se de uma identidade diferida. É um processo de construção do mundo.”