Memória não é História (e às vezes nem sequer é verdade)
O debate que Paulo Pinto e outras pessoas desejam, na forma como o desejam, serve exactamente para quê?
O historiador Paulo Pinto tem seguido o que tenho escrito nos jornais sobre escravatura e dedicou-me um texto crítico, no PÚBLICO. De entrada, Paulo Pinto deixa ficar reparos a pairar no éter da insinuação. Diz ele que “muito haveria e há a dizer sobre os dados históricos e o quadro explicativo” que eu apresento nos meus textos. Tenho, como é óbvio, todo o interesse em ouvir o que Paulo Pinto terá a dizer sobre esse assunto e fiquei na expectativa de que concretizasse as suas insinuações. Infelizmente, o meu interlocutor não o fez e preferiu navegar, de imediato, para outras águas. Sigamo-lo, então, nas águas de sua preferência, a que chama “opinião pública” e “memória colectiva”.
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O historiador Paulo Pinto tem seguido o que tenho escrito nos jornais sobre escravatura e dedicou-me um texto crítico, no PÚBLICO. De entrada, Paulo Pinto deixa ficar reparos a pairar no éter da insinuação. Diz ele que “muito haveria e há a dizer sobre os dados históricos e o quadro explicativo” que eu apresento nos meus textos. Tenho, como é óbvio, todo o interesse em ouvir o que Paulo Pinto terá a dizer sobre esse assunto e fiquei na expectativa de que concretizasse as suas insinuações. Infelizmente, o meu interlocutor não o fez e preferiu navegar, de imediato, para outras águas. Sigamo-lo, então, nas águas de sua preferência, a que chama “opinião pública” e “memória colectiva”.
Paulo Pinto não ignora que o tema da escravatura e da sua abolição já foi debatido no passado. Mas talvez ignore — porque não é um especialista nesta área nem, julgo eu, no século XIX — a dimensão e a forma desse debate nas Cortes e nos jornais. Sim, o assunto do tráfico de escravos e da escravidão foi debatido e resolvido pelos antigos portugueses na medida que isso foi política e humanamente possível. É claro que o debate pode sempre ser retomado, ainda que já não haja, felizmente, navios negreiros a sulcar o Atlântico nem gente a penar numa qualquer plantação do Brasil. Dir-se-á que há outras coisas e que certos problemas actuais resultam em linha recta da antiga escravatura. De facto, nada, no presente, está desligado do que aconteceu antes, mas a causalidade em História é uma coisa complexa e eu invejo aqueles que conseguem, com tamanha certeza e a uma distância de 200, 300, 400 anos, apontar as causas precisas das situações actuais. Eu não consigo. Apesar de ter mais do que as quatro ideias que Paulo Pinto conseguiu descortinar nos meus argumentos, o meu olhar não chega assim tão longe e, aonde chega, não encontra só linhas rectas.
Ainda assim, dentro das minhas limitações como historiador e visto que não precisamos de abolicionistas fora de época ou de reprise, eu pergunto: o debate que Paulo Pinto e outras pessoas desejam, na forma como o desejam, serve exactamente para quê? O debate público só tem interesse se servir para informar, para desfazer persistentes mitos, não para tentar substituir uma mitologia por outra. E há esse risco? Há, e Paulo Pinto ilustra-o perfeitamente. De facto, o meu contraditor quer, assumidamente, arrancar a conversa do campo da História e arrastá-la para o campo desprotegido da memória — coisa curiosa, vinda de um historiador. É que, ao contrário do que por vezes se pensa, História e memória são coisas diferentes. A memória é uma visão fragmentada, geralmente emotiva e parcial, do passado. É natural que os saudosistas de Salazar tenham, relativamente às colónias, uma memória muito diferente da que os africanos que viveram sob esse regime autoritário ainda conservam. É mesmo assim que as memórias funcionam. São tendenciosas e, muitas vezes, facciosas. Fazendo uma analogia futebolística, o benfiquista tem uma memória do jogo, o sportinguista tem outra, diferente. Ambas são parcialmente falsas, mas ambas são legítimas, enquanto memórias. Todavia, quem quiser saber o que foi de facto o jogo terá de consultar o historiador porque a História, ao contrário da memória, é crítica e global. Os que a escrevem não devem preocupar-se com militâncias políticas e sociais, nem com interesses de grupo. Não devem ser constrangidos nem condicionados por nenhuma dessas coisas. Parte do seu préstimo e valor — quando o têm — vem justamente da sua isenção.
A História é uma coisa séria, não se faz em comícios — falsifica-se e deturpa-se em comícios — e por muito que isso desagrade a Paulo Pinto e outras pessoas, tem sempre de ser chamada a qualquer debate sobre factos do passado. É o cinto de segurança desses debates. Serve para dizer aos cidadãos o que é verdade e o que é mentira. Serve para que o carro da demagogia barata não role sem travões pelas descidas dos nossos preconceitos e das nossas fantasias. É claro que os historiadores não devem estar fechados em torres de marfim. Mas a quem se destina essa advertência? Paulo Pinto estará provavelmente a ver-se ao espelho e a avaliar-me a partir do seu próprio mundo de académico. Eu tenho feito o possível para trazer este assunto da escravatura até às pessoas. Escrevo sobre isso nos jornais desde 2001 e escrevi um romance histórico que foi lido por milhares de leitores, e no qual está o que, em minha opinião, e ainda que de forma ficcional, corresponde ao essencial do que foi a escravatura e o envolvimento dos portugueses nela. Não dei por Paulo Pinto ter escrito antes sobre este assunto, mas foi, certamente, porque andei distraído.