Contas certas: orçamento e investigadores
Se olharmos para o OE, nós não estamos a apostar no Ensino Superior e Ciência: estamos a delapidar saldos.
Nas últimas semanas, alguns reitores voltaram a pedir resgates para libertarem bolseiros. Para quem não percebeu, estamos em tempo de preparação do Orçamento do Estado (OE). Não é a primeira vez que tal acontece (e sempre no mesmo momento). Contudo, é estranho que a reclamação tenha tanta ênfase numa conversão de bolsas em contratos financiada a 100% pela FCT e que nenhum deles tenha falado dos 9,2% de cativações no orçamento do Ensino Superior.
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Nas últimas semanas, alguns reitores voltaram a pedir resgates para libertarem bolseiros. Para quem não percebeu, estamos em tempo de preparação do Orçamento do Estado (OE). Não é a primeira vez que tal acontece (e sempre no mesmo momento). Contudo, é estranho que a reclamação tenha tanta ênfase numa conversão de bolsas em contratos financiada a 100% pela FCT e que nenhum deles tenha falado dos 9,2% de cativações no orçamento do Ensino Superior.
Acertemos então as contas com a realidade do orçamento do Ensino Superior e Ciência, de forma a perceber o impacto da conversão das bolsas em contratos.
Primeiro o óbvio: Portugal é o país da OCDE que menos investe no Ensino Superior. Apenas 0,8% do OE; uma fração inferior a 1/5 da percentagem investida pelo Chile (país ultra-liberal na sua política universitária).
Para 2017, o ministro Manuel Heitor tinha prometido um aumento de 4% no orçamento do ministério. A execução veio a mostrar-nos uma realidade bem diferente. Na verdade, houve uma redução de 1,5%.
Só a transferência de saldos de gerência veio (mais uma vez) salvar as contas, sendo que, só em aquisição de serviços, foram mobilizados 177,5M€. Esta transferência significa a delapidação de património dos estabelecimentos de ensino superior, com o uso dos seus fundos de reserva. Tal, não só maquilha o subfinanciamento, como fragiliza sobretudo os mais pequenos, cujos recursos em caixa eram, à partida, mais reduzidos.
A rubrica créditos especiais, que inclui os saldos, significa 20% (460M€) face à despesa consolidada.
Em resumo, se olharmos para o OE, nós não estamos a apostar no Ensino Superior e Ciência. Antes pelo contrário, estamos a delapidar saldos. Some-se a isto o peso das propinas sobre as famílias (30% do orçamento; o pior da UE) e a dependência dos fundos europeus, e temos o retrato de um país que não investe no seu futuro.
Porque é que nenhum reitor, ou o próprio Conselho de Reitores, ousou demonstrar esta realidade e preferiu antes pedir um resgate usando bolseiros como reféns?
Vejamos então os custos com estas contratações. A conversão de todas as Bolsas de Pós-Doutoramento implica +11M€/ano para pagamento de impostos de rendimento, aos quais acrescem +8,5M€/ano em contribuições sociais. A despesa é suportada a 100% pela FCT. As universidades têm investigadores garantidamente pagos (sem cativações). O orçamento do ministério da Ciência aumenta +0,8%/ano, recuperados integralmente (e no mesmo ano) em receita de impostos e contribuições. Impacto no défice: zero.
É uma medida emblemática, longe dos 300M€ previstos no Plano Nacional de Reformas e sem retirar verbas aos projetos de investigação. Diria que é um bom negócio e explica-se assim facilmente o consenso que obtivemos no Parlamento.
No final dos 6 anos é apenas necessário passar o cabimento desta verba para os estabelecimentos de ensino superior, sem impacto nas contas públicas e beneficiando as instituições de um reforço financeiro e do rejuvenescimento dos seus quadros.
Perante isto, qual a razão para tanta polémica? Bom, cada bolseiro doutorado contratado como investigador, ou docente, vai significar um voto e isso desequilibra as relações de poder. Entram muitos daqueles que têm vindo a municiar o sistema com investigação e financiamento, o que provoca o receio de alguns. Acrescente-se a valorização social dos doutorados e temos o incómodo dos defensores da política de menores salários.
Como última nota, não deixa de ser chocante ver pessoas que fizeram toda a sua carreira no serviço público, com todo o conforto, virem reclamar sobre incentivos ao comodismo. Muitos desses reclamantes são os mesmos que incentivam uma economia baseada em serviços e clamam sobre a baixa inserção de doutorados nas empresas. A estas mentes recomendo vivamente que leiam as entrevistas que a economista Mariana Mazzucato deu na sua passagem por Portugal. Talvez passem a perceber, um pouco melhor, o que estamos a fazer (que vai muito além do ministro Manuel Heitor).