História de uma vitória
Nos últimos dois dias assisti aqui a uma vitória dos polacos contra o seu próprio governo.
Gdansk, Polónia. — Nos últimos dois dias assisti aqui a uma vitória dos polacos contra o seu próprio governo. Vou falar do que vi e ouvi.
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Gdansk, Polónia. — Nos últimos dois dias assisti aqui a uma vitória dos polacos contra o seu próprio governo. Vou falar do que vi e ouvi.
Esta é uma cidade importante para a nossa era. Foi a partir do movimento dos trabalhadores dos estaleiros de Gdansk, e do seu sindicato Solidariedade, que a cortina-de-ferro que separava a Europa começou a ser levantada. Trinta e tal anos depois, um dos líderes do Solidariedade de então, Jaroslaw Kaczynski, agora líder de um partido hipocritamente chamado “Lei e Justiça”, está ele próprio empenhado num projeto de concentração de poder. Kaczynski fez aprovar leis destinadas a demitir todo o Supremo Tribunal e manter apenas os juízes que o seu ministro da justiça desejar, despedir a qualquer momento os juízes-presidentes dos tribunais menores e dominar também com nomeações políticas o órgão de disciplina dos magistrados (o Tribunal Constitucional já foi controlado há uns meses). Kaczynski aprendeu bem com os seus anteriores adversários. Também sabe manipular a retórica do nós-contra-eles: os juízes são comunistas, diz, precisam todos de ser substituídos. Ou são corruptos. Ou não têm valores morais nem ética profissional. Se não fossem estes argumentos, seriam outros. O resultado é que conta.
Aquilo com que ele não contava é com manifestações como estas a que tenho vindo a assistir, e que se organizam quotidianamente em todas as grandes cidades polacas. As pessoas à minha volta concentram-se em frente ao Tribunal Regional de Gdansk em defesa da independência do poder judiciário. No domingo, a manifestação é feita num tom de desafio. Há jovens e velhos, políticos e juristas, estudantes de arte e sindicalistas. O líder histórico do Solidariedade, Lech Wal?sa, também está aqui contra o seu ex-camarada Kaczynski. Todos gritam pela Constituição, exigem ao Presidente da República “três vezes veto!” contra as novas leis, trazem muitas bandeiras polacas e bastantes bandeiras da UE, fazem karaoke com letras inventadas para músicas pirosas. Divertem-se, escarnecem do poder, mantêm-se firmes.
Na segunda de manhã, inesperadamente, ganham. O Presidente da República Andrzej Duda decidiu recuar perante as multidões nas ruas e a possibilidade de um confronto entre a Polónia e a UE. Talvez com a cabeça na reeleição, anunciou que vetaria duas das três leis (o despedimento dos juízes em tribunais menores continua em cima da mesa). Nesse dia à noite, o tom da manifestação é de vitória. O microfone passa de mão em mão para quem quiser dizer uma palavras. Quase todos dizem que não há que agradecer ao Presidente da República: “ele só nos deu aquilo que já era nosso”. Prometem continuar na rua a lutar até à reversão de todas as leis contra o estado de direito.
Todo o processo foi bastante instrutivo sobre o que é o populismo hoje e qual é a melhor forma de o contrariar. O que se passou aqui foi que Kaczynski quis abrir uma conversa contra os juízes, mas os planos saíram-lhe furados quando os cidadãos rejeitaram as premissas dessa conversa. Nesta altura do campeonato, Kaczynski quereria que a conversa fosse se os juízes eram comunistas ou não, corruptos ou não, imorais ou não. A resposta nas ruas foi: o que tu queres é mais poder. E nós não te vamos dar mais poder.
Esta lição é crucial nos dias que correm, quando a técnica dos demagogos e populistas é precisamente a de empolar e cavalgar controvérsias que lhes permitam ganhar poder. Os polacos demonstraram que é possível desmascarar esta tática indo diretamente à denúncia das intenções que estão por trás dela e não concedendo qualquer espaço político à conversa que os populistas querem fomentar. Obrigado de novo, Polónia, pelos teus cidadãos.