O amor insolente de Dido e Eneias
A ópera de Purcell numa encenação muito simples, capaz de envolver e fazer interagir no palco excelentes jovens músicos e cantores, de uma forma extremamente inteligente.
Cupido faz das suas, com a ajuda de Vénus. Os impérios tremem e os deuses agitam-se quando o amor desencadeia as suas tempestades. Dido é rainha de Cartago, Eneias herói troiano. Mas eles foram alvo das setas de Cupido e mostram as suas fragilidades como qualquer ser humano. Na extraordinária ópera de Henry Purcell, com um libreto baseado livremente na Eneida de Virgílio, este amor impossível é traduzido em música. Música que respira com os tempos do drama. E neste espectáculo da Academia Barroca Europeia de Ambronay, dirigido por Paul Agnew (um tenor experimentado na música barroca e este ano director do projecto de ópera da Academia), a fabulosa música de Henry Purcell respirou mesmo.
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Cupido faz das suas, com a ajuda de Vénus. Os impérios tremem e os deuses agitam-se quando o amor desencadeia as suas tempestades. Dido é rainha de Cartago, Eneias herói troiano. Mas eles foram alvo das setas de Cupido e mostram as suas fragilidades como qualquer ser humano. Na extraordinária ópera de Henry Purcell, com um libreto baseado livremente na Eneida de Virgílio, este amor impossível é traduzido em música. Música que respira com os tempos do drama. E neste espectáculo da Academia Barroca Europeia de Ambronay, dirigido por Paul Agnew (um tenor experimentado na música barroca e este ano director do projecto de ópera da Academia), a fabulosa música de Henry Purcell respirou mesmo.
Na primeira parte, ouvimos fragmentos de Didon, uma “tragédia em música” do compositor francês Henry Desmarets, numa colagem bem elaborada de cenas desta ópera. Um exemplo interessante do que se pode fazer (numa escola de música, por exemplo) com obras menos conhecidas do repertório barroco, neste caso apresentando-a ao lado da famosíssima ópera de Purcell. A obra de Desmarets, num suave crescendo de tensão, apresentou as personagens aos espectadores e introduziu-nos numa certa linguagem musical do barroco francês. Ficámos a conhecer os excelentes instrumentistas e as belas vozes de jovens cantores e cantoras da actual Academia de Ambronay, um projecto criado para aperfeiçoamento de jovens músicos europeus na música barroca. Mas a versão apresentada estava longe da elaboração cénica do que se seguiria, e aproximava-se muito mais de uma versão de concerto com apenas algumas marcações cénicas e movimentações. O público apreciou a boa música, mas queria mais.
Em Dido e Eneias foi toda outra coisa: um espectáculo com uma encenação muito simples, mas capaz de envolver e fazer interagir, no mesmo espaço do palco, músicos e cantores, de uma forma muito curiosa e muito inteligente. O maestro (e encenador) sentou-se desta vez na plateia — não era preciso estar no palco para nada. Aqui os músicos tinham de ir simplesmente uns com os outros. E foi notável a capacidade de respiração colectiva, musical e cénica, daqueles cantores e daqueles músicos tocando violinos e violas d'arco, teorba, cravo, viola da gamba... Assim respirou também a maravilhosa música de Purcell.
Eneias foi o baixo Renaud Bres (comovente na cena em que pergunta “Que deverá fazer o perdido Eneias?”) e Dido foi Deborah Cachet, com uma voz límpida e de afinação irrepreensível, tanto que chegámos a julgar que não ia ter força para exprimir (na voz e no corpo) os tormentos da rainha de Cartago. Mas ela foi capaz disso também nos momentos fulcrais, ficando bem mais dura no último diálogo com Eneias (ofendida pelo seu amor preferir cumprir as ordens dos deuses) e agarrando muito bem o momento final (“A tua mão, Belinda!”) em que ela diz “lembra-te de mim mas esquece o meu destino”.
Belinda – um papel mais importante do que parece - foi cantada por Kerstin Dietl, soprano, que esteve impecável, aliás tal como a 2.ª mulher, Aurora Peña, também soprano. Todos os cantores, em coro ou em pequenas intervenções secundárias, fizeram um trabalho admirável de conjunto, descobrindo e revelando um teatro de vozes, enquanto os músicos descobriam o canto (a voz) dos seus instrumentos, e por essa via também o drama.
Belinda está sentada no único adereço usado em toda a ópera: um simples banco de piano, preto. A rainha Dido está a seu colo e canta o seu lamento: “lembra-te de mim mas esquece o meu destino”. Não esqueças as coisas boas da minha vida, não lembres apenas a minha triste sorte de morte, mas não esqueças também este amor gritando liberdade, que transgride os esquemas políticos dos impérios e os caprichos dos deuses. É já um amor quase liberto das leis antigas, insubmisso, mas ainda derrotado e impossível, porque afinal Eneias decide obedecer.
A música de Purcell, de uma simples e intensa beleza dramática (e também nesse sentido é excepcional no seu tempo), reduzindo os artifícios do teatro ao estritamente necessário (como esta encenação felizmente entendeu), de uma respiração teatral espantosa (que o espantoso grupo de jovens músicos captou perfeitamente), essa maravilhosa música parece perguntar, insolente: “Mas impossível porquê?”