Kafka foi à escola pública
Só não digo ao primeiro-ministro que tem de tomar conta da minha filha em Setembro porque acho que ele ainda aceita.
Um pai de uma rapariga de cinco anos inscreve-a numa escola pública para ela entrar no primeiro ano. Melhor dizendo, inscreve-a em quatro escolas públicas, não vá o diabo tecê-las. Como vive em Lisboa, e os agrupamentos escolares estão colados uns aos outros, tenta dois deles, os mais próximos de casa, sem inventar moradas.
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Um pai de uma rapariga de cinco anos inscreve-a numa escola pública para ela entrar no primeiro ano. Melhor dizendo, inscreve-a em quatro escolas públicas, não vá o diabo tecê-las. Como vive em Lisboa, e os agrupamentos escolares estão colados uns aos outros, tenta dois deles, os mais próximos de casa, sem inventar moradas.
Quando as listas começam a sair, tenta ver nos sites e nada. Vai a uma escola e nada. Outra. E outra. Depois recebe um sms: a sua filha, como é condicional, não obteve vaga. Ficou-se no pré-escolar. Condicional é quem nasceu de 15 de Setembro a 31 de Dezembro. Lembrem-se disto: nunca fazer filhos para eles nascerem nessa altura.
Um pai decide, então, lutar pela filha. Vai ao primeiro agrupamento e dizem-lhe que não é possível reclamar ou tentar outra via. Mas sugerem que veja no outro agrupamento ou que tente a direcção-geral (DG). O site da DG está em baixo, não funciona (são milhares a tentar o mesmo). No outro agrupamento dizem que tente no anterior, mas que sim, dá para reclamar. O pai volta lá. E de lá ligam para o outro. A reclamar, mas com eles (quem disse mandarem para lá o pai?!). “Mas há vaga em alguma escola, para ela não perder um ano?” E todos repetem os inquéritos das sondagens: não sei, não respondo.
O pai vai, então, à DG. Tira senha. Espera quatro horas. E lá consegue ser atendido (um dia perdido de trabalho). “E como é que eu posso fazer? Posso tentar inscrevê-la noutras escolas? Quais é que ainda têm vagas?” Respostas? Por ordem: “Não sei.” “Pode, mas a resposta não vai ser a que quer ouvir.” “Não lhe posso dizer.” E pergunta o pai, insistindo, desesperando: “Mas, se não me pode dizer, quem é que pode?” A resposta: ninguém. (Já vos disse que o site da DG está em baixo?)
O pai tenta, porque os pais tentam sempre tudo. Põe num papel, à mão, mais quatro escolas. “E quando é que me respondem? Quando é que posso saber alguma coisa?” A resposta: na DG vão ver, uma a uma, as reclamações e pedidos, ligando uma a uma às escolas para ver se alguma pode meter mais alguém. “Este é só o segundo dia, Agosto vai ser muito pior”, diz a senhora. “É possível que só saiba alguma coisa depois de as aulas começarem”, avisa ela. “Mas não a inscreva no Filipa, nessa já sabe que é impossível.” Impossível não. É Kafka. As escolas públicas não têm vagas, mas o Governo já deu o pré-escolar aos quatro anos, já deu mais intervalos aos professores e mais lugares nos quadros também.
Passo por isto e lembro-me de ouvir António Costa dizer no fim-de-semana: “Os serviços públicos estão melhores.” Garanto-vos: só não digo ao primeiro-ministro que ele tem de tomar conta da minha filha em Setembro, enquanto ninguém me diz nada, porque acho que ele ainda aceita. Era só o que mais me faltava.