Musgo usa para o sexo as mesmas proteínas que ajudam os neurónios nos animais
Estudo publicado na revista Nature estabelece uma ligação surpreendente entre o esperma do musgo e os neurónios no cérebro dos animais mostrando que usam a mesma proteína e o mesmo mecanismo.
Há umas proteínas chamadas “receptores do glutamato” que, nos animais, desempenham um papel importante no funcionamento dos neurónios dentro do cérebro, “ajudando” em áreas como a memória e aprendizagem. As plantas também têm estes receptores essenciais para o sistema nervoso dos animais. Para quê? Segundo um estudo publicado esta segunda-feira na revista Nature, assinado por investigadores portugueses, o musgo usa estas proteínas para levar o esperma a fazer as manobras necessárias para chegar aos órgãos femininos e assegurar descendência.
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Há umas proteínas chamadas “receptores do glutamato” que, nos animais, desempenham um papel importante no funcionamento dos neurónios dentro do cérebro, “ajudando” em áreas como a memória e aprendizagem. As plantas também têm estes receptores essenciais para o sistema nervoso dos animais. Para quê? Segundo um estudo publicado esta segunda-feira na revista Nature, assinado por investigadores portugueses, o musgo usa estas proteínas para levar o esperma a fazer as manobras necessárias para chegar aos órgãos femininos e assegurar descendência.
Primeiro o óbvio mas, possivelmente, ignorado por algumas pessoas: sim, as plantas também procriam. E, sim, podemos também falar em esperma e óvulos quando falamos da reprodução do musgo. Quanto aos “bebés” do musgo, é preferível que sejam chamados “esporos”. Dito isto, vamos avançar para os resultados do estudo de investigadores do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), em Oeiras, e da Universidade de Maryland (EUA) que andaram a bisbilhotar a vida sexual do musgo.
Em 2011, a mesma equipa de investigadores do IGC publicou um artigo na revista Science onde desvendava que a reprodução em plantas com flor era feita através do mesmo sistema de comunicação que existe nos neurónios. O trabalho mostrava como a produção de uma molécula nas paredes do ovário da planta ajudava a “guiar” o tubo polínico que nasce a partir do grão de pólen até ao sítio necessário para fecundar o óvulo. Agora, foi a vez de olhar para a reprodução do musgo (Physcomitrella patens) e concluir que, neste caso, o esperma nada até ao óvulo recorrendo ao mesmo mecanismo que os neurónios usam para comunicar.
Ao contrário de outras plantas superiores, o musgo tem um esperma móvel e apenas duas cópias dos genes (GLRs) que codificam as proteínas chamadas “receptores do glutamato”. Ou seja, esta planta primordial do grupo dos briófitos (uma das primeiras plantas a sair da água) é um excelente modelo de estudo para uma abordagem genética, permitindo observar “facilmente” os efeitos de uma mutação num destes genes. “Nas plantas superiores há imensas cópias destes genes e não percebemos como é que há plantas que têm mais genes de receptores do glutamato do que os que existem no nosso cérebro, quando as plantas não têm sistema nervoso. Portanto, o que fizemos foi andar para trás na evolução e tentar perceber se há uma função associada a estes genes que tenha sido conservada durante a evolução. E por isso andámos para trás e fomos estudar plantas mais primitivas, menos evoluídas”, explica ao PÚBLICO José Feijó, investigador que iniciou esta investigação no IGC e que actualmente trabalha na Universidade de Maryland.
Carlos Ortiz-Ramírez, estudante de doutoramento no IGC, é o primeiro autor do artigo publicado agora na revista Nature que esclarece o que se passa no mundo reprodutivo das plantas primitivas. Os investigadores perceberam que quando desligavam os dois genes o musgo deixava de ter descendência. Confirmaram também que o mecanismo usado pelas proteínas no musgo é semelhante ao que os neurónios usam para comunicar no sistema nervoso dos animais: ou seja, formando canais de iões por onde passa um fluxo de cálcio.
Confirmando que o lado “feminino” estava a funcionar bem, o problema deste musgo mutado e estéril foi detectado no esperma. “Enquanto o esperma normal se torce, vira e faz voltas apertadas para encontrar a entrada para os órgãos femininos, o esperma com mutações nos genes GLRs consegue nadar normalmente mas não muda de direcção”, refere o comunicado. José Feijó acrescenta: “O esperma não estava a fazer o seu trabalho, perdia-se e não conseguia ‘cheirar’ o que quer que seja que a parte feminina emite para o atrair.”
Mais: mesmo quando o desorientado esperma de musgo com mutações conseguia fertilizar os óvulos havia problemas no desenvolvimento dos esporos que, na maioria, acabavam por morrer. Porquê? Os investigadores perceberam que com estes dois genes desligados surge mais um problema técnico no ciclo reprodutivo afectando a produção de uma outra proteína (BELL1) que é essencial ao desenvolvimento dos “bebés” do musgo.
“Apesar de formarem canais de iões no musgo tal como em mamíferos, os receptores do glutamato desempenham duas funções completamente novas e distintas no musgo, tanto em termos de navegação do esperma como no controlo da expressão de genes, algo que é crucial para o desenvolvimento dos esporos. Descobrir isto foi muito surpreendente”, refere José Feijó no comunicado no IGC.
E será que este conhecimento poderá ser útil para estudar a infertilidade nos humanos? José Feijó sublinha que a sua equipa foi a primeira que estudou a expressão génica [activação de genes] do esperma “de qualquer espécie” e a primeira a encontrar ali a expressão de genes que se julgava estarem “sossegados”. “Fizemos dois estudos que acabaram por não ser publicados, um na mosca drosófila e outro em humanos. E quando percebemos que o esperma do musgo estava inactivo, fomos ver nesses resultados anteriores se no esperma humano havia receptores do glutamato. E há, vários. Portanto, eles estão lá, mas se fazem alguma coisa não sabemos”, diz José Feijó. Aparentemente, também não vão tentar saber. “É muito complicado investigar nessa área, até por questões éticas, e, por isso, não vamos tentar saber isso agora. Mas fica o ponto de interrogação”, diz o investigador.
Sem arriscar esse salto na evolução, do musgo até ao esperma humano, qual será então um dos próximos passos deste trabalho? “Vamos andar para trás na evolução, porque há algas unicelulares que também têm receptores do glutamato e perceber se numa alga verde também surgem problemas de fertilização quando se mutam estes genes. Isso seria uma confirmação quase imediata que os receptores do glutamato foram conservados durante a evolução e associados à navegação do esperma.”