Para sobreviver, o jaguar ter-se-á cruzado com o leão
Pela primeira vez, o genoma completo do jaguar foi sequenciado e o exemplar escolhido chama-se Vagalume e vive num jardim zoológico do Brasil. Neste estudo, em que participou um cientista português, percebeu-se que o jaguar pode ter-se misturado com o leão para enfrentar diminuições populacionais.
É fácil distinguir um leão de um jaguar. E, além das diferenças no aspecto, o leão vive sobretudo em África (com uma população residual na Ásia) e o jaguar nas Américas. Mas, há cerca de 300 mil anos, glaciações terão provocado oscilações nas temperaturas e houve uma redução das presas dos felinos. Como tal, houve uma diminuição populacional. Terá ocorrido então uma hibridação (cruzamento entre espécies diferentes) histórica, para que a sobrevivência a longo prazo fosse garantida. Uma dessas hibridações terá acontecido entre o jaguar e o leão, que na altura tinha uma distribuição intercontinental.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
É fácil distinguir um leão de um jaguar. E, além das diferenças no aspecto, o leão vive sobretudo em África (com uma população residual na Ásia) e o jaguar nas Américas. Mas, há cerca de 300 mil anos, glaciações terão provocado oscilações nas temperaturas e houve uma redução das presas dos felinos. Como tal, houve uma diminuição populacional. Terá ocorrido então uma hibridação (cruzamento entre espécies diferentes) histórica, para que a sobrevivência a longo prazo fosse garantida. Uma dessas hibridações terá acontecido entre o jaguar e o leão, que na altura tinha uma distribuição intercontinental.
Esta é uma das hipóteses do primeiro estudo do genoma completo do jaguar, publicado recentemente na revista Science Advances. O estudo desenvolveu-se sobretudo nos últimos cinco anos e contou com uma equipa de cientistas do Brasil, dos Estados Unidos, da Rússia, da Irlanda, de Espanha, da Argentina e de Portugal, nomeadamente com o geneticista português Agostinho Antunes, do Departamento de Biologia da Faculdade de Ciências e do Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental (CIIMAR), da Universidade do Porto.
O jaguar (de seu nome científico Panthera onca) é o maior felino das Américas. O seu tamanho pode chegar aos 1,85 metros e alcançar cerca de 120 quilos. Distribui-se desde a América do Sul ao México (na América do Norte). O seu habitat é a floresta, quer seja tropical, sazonalmente alagada ou até seca. A sua pelagem é acastanhada e com várias pintas pretas. Se bem que nas zonas mais densas da floresta tropical, podem ser encontrados jaguares só pretos. E como é um animal de grande porte, as suas presas são jacarés ou outros animais também de grande porte nas Américas.
Agora, o seu genoma completo foi então sequenciado pela primeira vez. O jaguar escolhido é um macho, chama-se Vagalume e vive num jardim zoológico de Sorocaba, em São Paulo (no Brasil). Agora com 94 quilos, nasceu em 1997, na região brasileira do Pantanal, em Mato Grosso, no Brasil. “Procurei um animal de cativeiro, para facilitar a recolha de amostras, mas que fosse originário da natureza”, explica Eduardo Eizirik, da Universidade Católica do Rio Grande do Sul (no Brasil) e coordenador do trabalho, num comunicado do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, do Ministério do Meio Ambiente do Brasil.
“Foi também sequenciado o genoma do leopardo [ou Panthera pardus], mas com uma cobertura mais baixa”, acrescenta Agostinho Antunes. Estes genomas foram depois comparados com o genoma de outros grandes felinos do género Panthera (que já tinham sido sequenciados): o do leão (ou Panthera leo), o do tigre (ou Panthera tigris) e o do leopardo-das-neves (ou Panthera uncia).
Um felino mais pequeno também fez parte deste estudo: o gato doméstico (ou Felis silvestris catus). O genoma do gato doméstico foi o primeiro a ser sequenciado, de acordo com Agostinho Antunes. E os felinos mais pequenos ainda estão muito ligados aos maiores. Por exemplo, o tigre-da-sibéria (ou Panthera tigris altaica), o maior de todos os felinos, tem uma semelhança genética com o gato de 95,6 por cento, segundo um estudo de 2013 na revista Nature Communications. Nessa investigação, os cientistas também observaram que a força muscular e a dieta carnívora do tigre está inscrita nos seus genes.
Agora, no estudo da Science Advances, foi possível relacionar pela primeira vez cinco espécies do género Panthera. “É um grupo que tem várias espécies que até são fáceis de distinguir [a nível físico] ”, considera o geneticista português. “Já em termos genéticos têm muitas semelhanças e é difícil fazer uma árvore filogenética e perceber correctamente a relação entre estas espécies, a menos que se use uma grande quantidade de informação genética.” Foi isso que se tentou fazer com este trabalho.
Percebeu-se então que as espécies deste género tiveram um ancestral comum há cerca de 4,6 milhões de anos. Esse ancestral já está extinto e seria muito parecido com o actual leopardo. A origem ancestral terá acontecido algures na Ásia. Depois, as espécies descendentes ter-se-ão espalhado pelo planeta e colonizado a Europa, África ou as Américas.
Saltemos agora uns anos na história evolutiva do jaguar. Há cerca de 300 mil anos terão ocorrido alterações a nível ambiental devido a glaciações e houve uma diminuição da população das espécies. “Provavelmente, a redução das presas destes animais terá causado um colapso populacional”, considera Agostinho Antunes. O estudo sugere então que, para se adaptarem ao ambiente e sobreviverem, espécies distintas ou diferentes populações cruzaram-se. Afinal, tinha-se tornado difícil encontrar parceiros e estava-se a perder variabilidade genética. Desta forma, um dos cruzamentos terá acontecido entre o jaguar e o leão, o que pode ter facilitado a adaptação de uma das espécies ou de ambas. No jaguar, pelo menos em dois genes (envolvidos na formação do nervo óptico), há provas de um antigo cruzamento com o leão.
“Portanto, em determinadas situações, a passagem de determinado material genético de uma espécie para a outra pode ser vantajosa para essa outra espécie”, explica o investigador. E lança ainda outra hipótese: “Pode ter havido também uma sobreposição física de habitat, que tenha facilitado esta troca de material genético entre diferentes espécies e que agora se encontram totalmente separadas.”
Nesta viagem pelo genoma dos grandes felinos descobriram ainda outros genes de selecção natural que mostram a adaptação das espécies estudadas a novas condições ambientais. Esses genes são responsáveis por características como a visão, o olfacto, a reprodução, o metabolismo ou o desenvolvimento destes animais.
Espécie “quase ameaçada”
Por exemplo, foram identificados dois genes, envolvidos no desenvolvimento do crânio, que apenas provocaram mutações no jaguar. E podem assim ter determinado a formação da cabeça robusta e da mordida poderosa desta espécie. “O jaguar tem uma mordida extremamente possante e tem a capacidade de quebrar ou perfurar o crânio de répteis couraçados, como jacarés ou tartarugas. Esta é uma adaptação do jaguar ao ambiente de floresta tropical densa e que lhe permite alimentar-se de jacarés e tartarugas, que não têm muitos predadores”, explica ainda o geneticista ao PÚBLICO.
Se avançarmos para os dias de hoje, o jaguar está classificado como “quase ameaçado” pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês). E Agostinho Antunes ainda avisa que algumas populações já se extinguiram mesmo. “No Brasil, tem existido uma grande regressão da espécie”, alerta. “As populações [humanas] têm-se movimentado para zonas bastante arborizadas e isso também torna muito mais vulneráveis as populações de jaguar.” A desflorestação é assim uma das suas maiores ameaças.
De que forma pode o seu genoma ajudá-lo na sua conservação? “Conhecer o genoma de uma espécie é extremamente importante para se compreender melhor a organização genética dessa espécie e de outras espécies relacionadas”, responde o investigador. E como um dos sintomas das populações em declínio é a perda da variabilidade genética em algumas populações, o estudo do genoma pode identificar algumas ameaças de mutações indesejadas que podem interferir, por exemplo, com a resistência imunitária ou com a reprodução.