Depois do “Brexit”, irrompe a crise polaca
Kaczynski passou uma “linha vermelha” ao pôr em causa a separação de poderes.
A Polónia de Jaroslaw Kaczynski entrou em colisão aberta com a Comissão Europeia (CE), ao pôr em causa os “valores fundamentais” da UE, designadamente o Estado de direito e o princípio da separação de poderes. Já não é uma questão interna polaca, mas um problema europeu com uma dimensão geopolítica. Está em curso um debate sobre a possibilidade de sanções. A Polónia é um caso muito mais complexo do que a Hungria e a margem de manobra da UE é muito estreita.
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A Polónia de Jaroslaw Kaczynski entrou em colisão aberta com a Comissão Europeia (CE), ao pôr em causa os “valores fundamentais” da UE, designadamente o Estado de direito e o princípio da separação de poderes. Já não é uma questão interna polaca, mas um problema europeu com uma dimensão geopolítica. Está em curso um debate sobre a possibilidade de sanções. A Polónia é um caso muito mais complexo do que a Hungria e a margem de manobra da UE é muito estreita.
Em Janeiro de 2016, a CE abriu um inquérito sobre a situação do Estado de direito na Polónia. Ao fi m de 19 meses de tensão, Kaczynski passou uma “linha vermelha”. Na quinta-feira, o Sejm, câmara baixa do Parlamento, aprovou uma lei que implica a subordinação do Tribunal Constitucional ao executivo. Já no dia 12, o Sejm — em que o partido de Kaczynski, Lei e Justiça (PiS), tem a maioria absoluta — aprovara outras reformas que colocam o sistema judicial sob a tutela do Governo.
Grzegorz Schetyna, líder do partido de oposição Plataforma Cívica (PO), denunciou a decisão como um “golpe de Estado”. À noite houve manifestações por toda a Polónia, exigindo ao Presidente Andrzej Duda que vete a reforma. O Presidente admitira há dias vetar a lei, sugerindo o estabelecimento de uma maioria de três quintos dos deputados para nomear os juízes constitucionais. Mas é um homem de confiança de Kaczynski e poucos acreditam nessa possibilidade. Falta ainda a votação no Senado, onde o PiS também dispõe da maioria absoluta.
Kaczynski argumenta que o voto é o critério supremo. Entende que um Governo saído de uma maioria eleitoral não pode ser limitado por um Tribunal Constitucional ou por um quadro legal pré-existente. Diz: “O inimigo é o ‘impossibilismo’ legal.” Recusa a ideia de contrapoderes. O ministro da Justiça, Zbigniew Ziobro, é explícito: “Dissemos que íamos fazer mudanças radicais no sistema judicial. (...) Vamos acabar com um Estado dentro do Estado.”
Os gémeos Kaczynski
É indispensável fazer uma curta viagem no tempo. O PiS, fundado pelos gémeos Lech e Jaroslaw Kaczynski, antigos colaboradores de Lech Walesa, venceu as legislativas de 2005. Pouco depois, Lech foi eleito Presidente. A seguir, Jaroslaw assumiu a chefia do Governo. Tentaram promover uma “refundação da Polónia” assente nos “valores nacionais”. Desencadearam uma extraordinária “caça às bruxas” que, a pretexto de punir personagens do regime comunista e “purificar a Polónia”, visava eliminar os rivais da elite católico-liberal que fez a transição para a democracia em 1989.
O PiS não tinha, no entanto, a maioria absoluta. O Governo caiu em 2007 e perdeu as eleições antecipadas, ganhas pela PO, na altura liderada por Donald Tusk, hoje presidente do Conselho Europeu. Lech Kaczynski morre em 2010 num acidente de aviação.
O PiS regressa ao poder nas eleições de 2015, obtendo desta vez a maioria absoluta. O Governo liberal da PO apresentava um balanço económico triunfal. Mas Jaroslaw Kaczynski aprendeu com o passado. Decidiu não concorrer às presidenciais de 2015. As sondagens previam a sua derrota. Apresentou o nome de Duda, um eurodeputado jovem e sem “cadastro” político, que foi eleito. A seguir, fez a campanha para as legislativas com base num programa social: era a altura de redistribuir aos polacos os frutos do crescimento. O Governo da PO estava esgotado e o PiS representava a “mudança”.
Kaczynski não anunciou o desígnio de construir uma “nova Polónia”, o que lhe faria perder votos. Não quis chefiar o Governo. Mantém-se apenas como líder do partido. Na sombra, exerce um quase absoluto controlo do poder.
A dimensão geopolítica
A diferença em relação a 2005 é a maioria absoluta. Mesmo assim, os liberais estavam tranquilos porque para rever a Constituição é necessária uma maioria de dois terços do Parlamento. Hoje, Ryszard Petru, líder do segundo partido da oposição, Moderno (liberal), adverte que o Governo está a usar a velha “táctica do salame” que pode vir a revelar-se eficaz no desgaste da democracia: “Se se corta fatia a fatia, a certa altura o salame desaparece.”
Kaczynski tem atacado noutros domínios, do audiovisual público à escola, passando pelo desígnio de “reescrever a História da Polónia”, de forma a legitimar a deriva conservadora e nacionalista. Precisa também de incrementar a sua política social como forma de mobilizar novos sectores da população contra o “egoísmo das elites” e assim compensar as violações do Estado de direito. Tem pressa em reforçar o controlo sobre o país até às eleições de 2019. Disse ao Financial Times que precisava de governar pelo menos durante dois mandatos.
O politólogo Georges Mink, especialista na Europa de Leste, faz um paralelo com a Hungria. O Fidesz, de Viktor Orbán, já tinha estado no poder mas perdeu as eleições de 2002. Quando as voltou a vencer, em 2010, mudou de ritmo. “É preciso andar depressa: em dois anos, Orbán neutralizou o Tribunal Constitucional, depurou a administração pública e os tribunais, impôs uma nova lei sindical limitando o direito à greve e promulgou uma nova lei sobre os media.” E repetiu o triunfo eleitoral em 2014, perante uma oposição exausta e com a ajuda de uma nova lei eleitoral. “Ao longo dos anos, Viktor Orbán foi aperfeiçoando o seu discurso, alcançando uma espécie de hegemonia ideológica.”
A Polónia é distinta da Hungria, mas a sua associação tem largos efeitos. Assinala Jacques Rupnik, outro especialista do Leste: “A chegada do PiS ao poder reforça o Grupo de Visegrado (Polónia, República Checa, Eslováquia e Hungria) na sua oposição à política europeia, e sobretudo alemã, na gestão da crise migratória. Combinado com a regressão democrática na Polónia, esse reforço acentua a percepção de uma divisão Leste/Oeste no seio da UE.”
Mas não é só isto, insiste Rupnik. “A questão da democracia na Polónia tem também uma dimensão geopolítica. Põe em causa o modelo que prevaleceu nos estudos das democratizações no Leste durante duas décadas: a transição leva à consolidação da democracia (uma eleição é uma escolha de governo e não de regime), o que, por sua vez, desemboca na integração no clube das democracias europeias, fenómeno que se presumia ser irreversível...”
Se as “alavancas” europeias são limitadas, o grande obstáculo aos desígnios de Kaczynski está dentro da Polónia. Tem uma sociedade civil dinâmica, maciçamente pró- europeia, que não demorou a manifestar os seus protestos. Será mais sábio apostar na sociedade polaca do que fazer ameaças que depois não podem ser cumpridas.
A braços com o “Brexit”, a UE enfrenta mais uma crise que, desta vez, ameaça não apenas a sua integridade mas também a sua identidade de clube democrático.