Gaye Su Akyol não tem deuses nem donos
Depois de uma estreia que a elevou a fenómeno do rock independente da Turquia, Gaye Su Akyol gravou Hologram Imparatorlugu, álbum que junta a tradição das grandes vozes do país a guitarras surf. Chega a Portugal para actuar na última noite do FMM Sines e, antes disso, no Lisboa Mistura.
A situação política e social na Turquia é demasiado urgente e imperativa para que Gaye Su Akyol pudesse deixar que até as metáforas sobre o momento se perdessem na ausência de tradução. Foi por isso que fez questão de colocar no booklet do CD as suas letras para Hologram Imparatorlugu (qualquer coisa como ‘holograma do império’) vertidas para inglês. “A música fala por si, claro, mas gosto de colocar sentimentos, mensagens e ideias nas letras”, diz ao Ípsilon. E as letras do seu segundo álbum obedecem a uma crença de que “política e música não podem ser partidas em duas partes, têm de estar juntas – porque a política significa pessoas”.
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A situação política e social na Turquia é demasiado urgente e imperativa para que Gaye Su Akyol pudesse deixar que até as metáforas sobre o momento se perdessem na ausência de tradução. Foi por isso que fez questão de colocar no booklet do CD as suas letras para Hologram Imparatorlugu (qualquer coisa como ‘holograma do império’) vertidas para inglês. “A música fala por si, claro, mas gosto de colocar sentimentos, mensagens e ideias nas letras”, diz ao Ípsilon. E as letras do seu segundo álbum obedecem a uma crença de que “política e música não podem ser partidas em duas partes, têm de estar juntas – porque a política significa pessoas”.
Uma das canções, como que tirando o tapete ao poder político, chama-se Kendimin efendisiyim ben (traduzível por "Sou a dona de mim mesma") e rejeita a ideia de que possa haver alguma figura com autoridade para dispor de cada indivíduo, dizer-lhe como deve viver a sua vida e entregar-lhe um conjunto de regras ao qual deve obediência cega. Uma recusa em tudo correspondente àquilo que Gaye Su Akyol defende para a Turquia e para o mundo. “Não gosto que haja gente a mandar em mim, não gosto que outras pessoas façam regras para mim – mas se é essa a situação, então todos nós, cidadãos, temos poder”, diz. “Eles não são os nossos deuses, não são os nossos donos e, portanto, temos de dizer-lhes quais a fronteiras dentro das quais as coisas podem ser feitas. Porque se lhes dissermos que podem fazer tudo, eles farão mesmo tudo. A minha música fala sempre de sermos espíritos livres e do nosso dever de nos lembrarmos disso.”
É evidente que Gaye tem um discurso muito pouco mascarado sobre a actualidade turca e, consequentemente, sobre um país mergulhado no regime de um Erdogan cada vez mais desabrido na perseguição a todos os seus adversários e vozes discordantes, e que tem mexido na Constituição do país para se adaptar de forma conveniente às suas aspirações. A cantora fala em concreto das perdas significativas para a vida do país nos últimos 10 ou 15 anos, afirmando que “as pessoas estão em fuga porque não se sentem em paz e livres aqui” – todos aqueles, no fundo, que possam não pertencer a uma religião ou ideologia dominantes e oficialmente apoiadas pelo regime. “Nós também não nos sentimos livres, claro”, acrescenta, como se a situação pudesse ser simplesmente aceitável para quem fica.
Ainda há duas semanas, a Marcha pela Justiça mostrou o quanto a oposição ao Presidente Recep Erdogan está viva e desafia a sua liderança. “Também não nos sentimos livres”, continua Gaye, “mas tentamos resolver isso através da nossa arte. Não é fácil solucionar uma questão política com música, mas não é impossível. Podemos sempre juntar pessoas e conseguir produzir um efeito de bola de neve que torne tudo ainda maior.” E declara a sua crença profunda de que as coisas possam estar melhores “daqui por cinco anos, porque as pessoas estão realmente despertas e perceberam o plano exacto que está por detrás destes anos de trevas.”
Gaye Su Akyol também já teve a lupa apontada à sua actividade como cantora. “Há cinco meses”, conta, “a polícia ligou-me por causa de uma canção chamada Nargile. Convidaram-me educadamente a ir até à esquadra e tive de testemunhar e clarificar algumas coisas porque alguém – eles obviamente não nos dão o nome – apresentou uma queixa contra a canção, alegando que falava de si. Mas nada aconteceu porque disse-lhes que não era acerca dele, é acerca do poder e de como o poder escraviza as pessoas. Fala do mundo, não apenas da Turquia. Mas estão a fazer isto com toda a gente que não pensa exactamente da mesma maneira que eles. Isso é horrível – e está a acontecer em demasiados lugares do mundo. A Europa parece melhor, mas tem muitas histórias horríficas que aconteceram há apenas 50 ou 60 anos e que continuam a acontecer, sobretudo com as minorias.”
Nargile, tema modelar na proposta de um rock sem necessidade de aceleração, belissimamente enigmático na forma como as guitarras de escola surf seguem as linhas sinuosas de escalas arábicas, diz no refrão qualquer coisa como “construíste a tua mansão / vendeste-nos bem / tens um palácio / mas são apenas quatro paredes vazias / os bens mutilam os mortais” para pouco depois acusar “roubaste o país / colocaste-o na tua mesa de cabeceira / antes estavas aí agora estás em todo o lado / cava bem fundo a tua sepultura / o teu cadáver não vale nada / enterra o corpo no espaço”. Gaye não suaviza as palavras. Fundamental para quem defende que os artistas devem erguer as suas vozes e escolher as suas lutas.
Oriente-Ocidente
A explosiva situação política na Turquia (por vezes literalmente explosiva, sobretudo no que toca à pouco pacificada situação de conflito com a população curda) tem implicado também um movimento migratório que a cantora lamenta e afirma estar a privar Istambul da sua multiculturalidade histórica. “Era muito melhor há 20 ou 30 anos, quando eu era criança”, compara. “Lembro-me que havia muitas pessoas de culturas diferentes a viverem juntas pacificamente. E a minha família diz-me que era ainda melhor há 40 anos. Agora, está a ficar pior a cada dia que passa.” É uma tendência para a uniformização social, religiosa e cultural que a desgosta com particular intensidade, uma vez que, assumindo o cliché, Gaye fala de Istambul como “uma ponte, de facto, entre a cultura ocidental e a cultura oriental”. “Há muitas civilizações que se encontram aqui e ao olharmos atentamente para as camadas culturais podemos identificar elementos gregos, antigos elementos otomanos e muitos mais na história de trocas deste país e desta cidade. Na minha música também se consegue perceber essa presença de vestígios ocidentais e orientais.”
Está tudo nos primeiros segundos de Hologram, tema de abertura do seu segundo álbum. As cordas esvoaçantes em delicioso frenesim, a guitarra inquieta, a voz vaporosa de uma cantora que não teria como evitar veicular a música turca antiga. “As minhas primeiras memórias são dessas velhas melodias turcas que me chegavam vindas da sala”, lembra. “Sinto que a minha base está aí porque quando comecei a cantar percebi que o faço com esse estilo antigo e suave tipicamente turco que tenho dentro de mim.” São os alicerces sobre os quais foi depois acrescentando a descoberta dos Nirvana possibilitada pelo irmão, os discos rock de Deep Purple e Jefferson Airplane que ouvia graças ao tio e o rock psicadélico da Anatólia, protagonizado por Erkin Koray, Cem Karaca ou Baris Manco, impossível de ignorar na história da música turca do século XX.
Na verdade, Gaye pensa nos Bubituzak – de que fazem parte os músicos que a acompanham – como “a versão 2017 do rock da Anatólia”. Os Bubituzak são uma espécie de versão local (e mais devedora da canção) dos febris e alucinados Mr. Bungle e Secret Chiefs 3, liderados pelo guitarrista Ali Güçlü Simsek, namorado de Akyol e a quem se juntou depois terminado o duo com que a cantora começou a mostrar-se na cena musical de Istambul. Foi com Simsek que trabalhou as composições e os arranjos do disco de estreia, Develerle Yasiyorum. A partir daí, a proximidade com os Bubituzak e a questão prática de haver um grupo já montado facilitou a criação de uma banda de apoio para a cantora, sintonizada nesta sua miscelânea de surf rock, psicadelismo e canções clássicas turcas.
Desse património das grandes vozes locais, Gaye Su Akyol destaca sem grande hesitação a figura de Selda Bagcan, lenda viva da música nacional e que além de voz de absoluta referência é também uma exímia tocadora de baglama (o saz turco) e uma figura política extremamente activa na vida do país – “sobretudo nos anos 70 e 80”, diz Gaye, “mas continua a ser muito corajosa em partilhar as suas ideias e os seus sentimentos neste ambiente político muito confuso”. Nos anos 1980, aliás, devido às suas canções de protesto e na sequência do golpe de estado de 80 (levado a cabo pelo general Kenan Evren), Bagcan passaria várias vezes pelos calabouços, tornando-se um alvo preferencial da ditadura militar.
Gaye, nascida em 1985, canta com frequência versões de Bagcan (Yaz gazeteci yaz, por exemplo) nos seus concertos, replicando, na verdade, aquilo que Selda já fazia com o cancioneiro popular turco. “Não me lembro de quando a conheci, mas recordo-me de ser criança e ela ter uma canção muito psicadélica, muito diferente das outras canções dela. Foi a primeira música da Selda Bagcan que ouvi. E as pessoas da minha geração na Turquia lembram-se bem porque essa canção foi como uma bomba.” De certa forma, a síntese de tradição e arrojo psicadélico que então descobriu veio a servir de matriz para a música que tem criado – e que mostrará na noite de encerramento do Festival Músicas do Mundo, em Sines, no dia 29, e antes disso, a 22, no Lisboa Mistura, na Ribeira das Naus.
Vinda da antropologia
A conjugação de todas essas descobertas musicais que Gaye Su Akyol foi fazendo e acumulando durante infância e adolescência resultam agora “num novo género” que diz existir dentro de si, traduzível na música que faz, mas que tem também como alicerce os seus estudos de Antropologia Social. “A primeira coisa que aprendi no curso foi que todas as culturas são únicas”, revela. “Isto é uma informação universal e permanente em mim, porque como seres humanos tendemos a comparar as culturas e a sentir que uma é melhor do que outra. Mas quando faço música sinto que sou muito aberta a outras ideias por causa desses ensinamentos.”
Tal abertura leva-a também a procurar a sua própria identidade no meio de um caldeirão maior. O que faz com que não se veja como uma criadora isolada, mas que se entenda como uma peça pertencente a uma tradição e história que não quer desprezar – apesar do apelo do rock. “Se seguisse apenas algo que não me pertence [refere-se ao rock], tornar-me-ia um deles. Não tanto um deles, na verdade, mas mais uma cópia deles. E ninguém gosta de ver cópias. O meu pai, que é pintor [Muzaffer Akyol], sempre me pôs a pensar que devemos identificar e seguir as nossas raízes. Devemos procurar o nosso caminho e a nossa forma de pensar, mas sem que isto signifique que o fazemos do nada. Devemos conhecer aquilo que foi feito antes de nós. Se temos algo cá dentro, não o devemos odiar. Se gostamos de uma canção da nossa cultura e sentimos vergonha, devemos deixar de senti-lo.”
Em Gaye Su Akyol não há uma gota de vergonha. Apenas uma vontade de fazer música orgulhosamente turca, mas pertencente a uma Turquia construída sobre o cruzamento e as trocas das mais diversas civilizações.