We all live in a yellow submarine (porque a sociedade não se resume ao preto e branco)
Os mais de 40 anos de democracia plena não foram (ainda) capazes de reverter desigualdades sociais seculares.
Nestas últimas semanas de pré-silly season, o tema do racismo português emergiu com força enquanto questão fraturante da nossa sociedade. Os episódios da Cova da Moura (e a sua judicialização), os eventos racistas de barramento de entradas em discotecas (e a sua invisibilização) e a venturosa questão cigana (tornada tema eleitoral) são apenas indícios de algo bem mais profundo, pouco silly e nada sazonal. Comecemos pelo óbvio. Portugal não é um país racista. O Estado português não é racista. A sociedade portuguesa não é racista. Mas muitos portugueses e portuguesas são intrinsecamente racistas (e xenófobos) e há que assumi-lo para, num momento subsequente, perceber como podemos mudar esta realidade e ultrapassar esta destrambelhada ideia de que há uns que são superiores a outros por nascimento e direitos adquiridos.
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Nestas últimas semanas de pré-silly season, o tema do racismo português emergiu com força enquanto questão fraturante da nossa sociedade. Os episódios da Cova da Moura (e a sua judicialização), os eventos racistas de barramento de entradas em discotecas (e a sua invisibilização) e a venturosa questão cigana (tornada tema eleitoral) são apenas indícios de algo bem mais profundo, pouco silly e nada sazonal. Comecemos pelo óbvio. Portugal não é um país racista. O Estado português não é racista. A sociedade portuguesa não é racista. Mas muitos portugueses e portuguesas são intrinsecamente racistas (e xenófobos) e há que assumi-lo para, num momento subsequente, perceber como podemos mudar esta realidade e ultrapassar esta destrambelhada ideia de que há uns que são superiores a outros por nascimento e direitos adquiridos.
Os mais de 40 anos de democracia plena não foram (ainda) capazes de reverter desigualdades sociais seculares. Portugal é (ainda) um país de contrastes, pleno de desigualdades, incapaz de gerar uma igualdade de oportunidades para todos e de prosseguir uma política de longo prazo de garantia universal de igualdade plena. Num país multiétnico, multicultural, multicolor, as desigualdades sociais e a desigualdade económica atingem desmesuradamente alguns grupos sociais por comparação a outros e, de entre estes, muitos imigrantes e seus descendentes, muitos ciganos e outras minorias étnicas, sofrem na pele e na vida múltiplas exclusões que, individual e isoladamente, não são capazes de combater. O acesso à educação de qualidade, ao emprego, à habitação ou à cultura não estão igualmente distribuídos e este não acesso é causa de exclusão social transgeracional. A desigualdade de classe soma a outras desigualdades.
No episódio político do momento, todos os ciganos são transformados num estereótipo: são subsídio-dependentes e parte de uma “sociedade paralela” impossível de integrar socialmente na sociedade maioritária lusa. Em episódios como este (que são, infelizmente, recorrentes), a tendência para a coletivização de comportamentos individuais é a antítese da construção do que queremos para um futuro inclusivo. Confunde-se o individual com o coletivo e transforma-se o estereótipo em verdade de (e para) combate político. O risco populista está mesmo ao virar da esquina, mas, como terá afirmado Einstein, estamos conscientes de que “It is harder to crack prejudice than an atom”.
O racismo em Portugal é de baixa intensidade, invisível no quotidiano da maioria na qual gera indiferença e de alta intensidade e quotidianamente sentido nas suas vítimas. É um racismo estrutural, mas desigualmente distribuído. O racismo em Portugal é um racismo simultaneamente herdado e culturalmente embutido na história que se ensina nas nossas escolas. Mouros, ciganos e negros não são matéria-prima para fazer heróis. É um racismo que não contrata negros ou ciganos, não lhes aluga casas, lhes nega a presunção de inocência e os transforma em estereótipos (sim, estereotipar é uma actividade discriminatória). É um racismo em que provar a existência de racismo é muito difícil (porque não há dados) e em que as condenações por comportamentos racistas são escassas e têm pouco ou nenhum impacto social.
Não podemos vencer facilmente preconceitos há muito presentes na sociedade portuguesa, mas temos que pugnar por uma política que consagre a igualdade de oportunidades e o combate à exclusão social como valores societais inegociáveis. Como muitos outros países europeus, Portugal tem perante si um enorme e complexo desafio que passa por melhorar o nível de integração e inclusão social das minorias étnicas e culturais. A gradual exclusão social destes grupos, associada a uma dinâmica de preconceito e de estereótipo, coloca em sério risco a coesão social e abre portas a expressões populistas radicais que podem ser profundamente graves e socialmente disruptivas. A linha que divide a liberdade de expressão e o populismo é muito ténue e, sabemos hoje, construída com falsas notícias (fake news) que ganham vida própria e se autoalimentam nas redes sociais.
Temos já muito saber acumulado nestes temas, mas este conhecimento não foi ainda socializado e integrado na nossa cultura comum. Parece evidente que as atuais instituições, comissões e a legislação existente não são suficientes para acabar com os episódios racistas que têm sido divulgados e, muito menos, para promover a integração e inclusão social dos muitos milhares de indivíduos que são vítimas deste racismo estrutural. Também aqui falta uma estratégia que afirme com clareza a inclusão social dos ciganos e outras minorias como uma política estrutural. Um plano de reformas de combate à exclusão social e pela integração é um trabalho de Hércules, mas que importa realizar. Ao fim de 500 anos de exclusão, é tempo de acreditarmos que os ciganos e nós e nós e os ciganos somos partes de uma mesma nação de iguais. Que o submarino que nos transporta a todos é color blind e que não vê o mundo a preto e branco.
O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico