Shepard Fairey: “A arte política nunca foi tão necessária como hoje”
Em 2008, quando ficou conhecido pelo cartaz HOPE de apoio a Obama, tudo parecia possível. Hoje com Trump no poder o cenário é negro. Ainda assim é a esperança que faz mover um dos mais importantes artistas gráficos e urbanos contemporâneos. Esta sexta inaugura uma exposição na Underdogs, em Lisboa.
Shepard Fairey foi preso 18 vezes. Algumas delas por autoridades governamentais que mais tarde haveriam de comissionar trabalhos da sua autoria. Como outros criativos da arte urbana, o americano começou por operar no espaço público, movendo-se na tensão entre legalidade e ilegalidade, mas a partir de 2008 o seu percurso fortaleceu-se quando concebeu, durante a primeira campanha presidencial de Barack Obama, o icónico cartaz HOPE, com um retrato de Obama a vermelho, branco e azul, que foi espalhado pelos Estados Unidos, disseminando-se pelos meios de comunicação de todo o mundo.
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Shepard Fairey foi preso 18 vezes. Algumas delas por autoridades governamentais que mais tarde haveriam de comissionar trabalhos da sua autoria. Como outros criativos da arte urbana, o americano começou por operar no espaço público, movendo-se na tensão entre legalidade e ilegalidade, mas a partir de 2008 o seu percurso fortaleceu-se quando concebeu, durante a primeira campanha presidencial de Barack Obama, o icónico cartaz HOPE, com um retrato de Obama a vermelho, branco e azul, que foi espalhado pelos Estados Unidos, disseminando-se pelos meios de comunicação de todo o mundo.
Hoje, aos 47 anos, é um dos mais importantes artistas gráficos e urbanos contemporâneos. Expõe regularmente em mostras individuais e colectivas desde 1993, tendo obras suas integradas em inúmeras colecções permanentes, privadas e públicas, como o MoMA de Nova Iorque, o museu Victoria and Albert de Londres, o Instituto de Arte de Boston ou no Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles, onde habita. Esta sexta inaugura, na galeria Underdogs, em Lisboa, a primeira exposição em Portugal (Printed Matters - Lisbon) ao mesmo tempo que concebeu três murais em espaço público, um deles em duo com Alexandre Farto (Vhils). A exposição estará patente entre 21 e 31 de Julho e 1 a 23 de Setembro. Os murais estão dispostos na rua Senhora da Glória, nº 39, na rua Natália Correia, ambos no bairro da Graça, e na rua José Gomes Ferreira, nas Amoreiras, em Lisboa.
Zanga com humanismo
“Por um lado é estranho olhar para trás e perceber como tanta coisa mudou, como esses tempos em que fugia das autoridades”, recorda, por entre risos, “por outro consigo ligar tudo o que fiz e vislumbrar que nada de essencial mudou: sou hoje mais conhecido, mas ainda faço, de vez em quando, escapadas nocturnas pelas ruas e continuo a achar que essa é a melhor galeria possível. É verdade que já não sou visto como um subversor, mas continuo a acreditar no pensamento independente e na mentalidade faça-você-mesmo. A única diferença é que agora tenho mais recursos e há mais oportunidades.”
Em Janeiro voltou a estar nas bocas do mundo porque concebeu a série de cartazes We The People, forma de demarcação da eleição de Donald Trump como Presidente dos Estados Unidos. Os cartazes (com retratos de afro-americanos ou latinos, dois dos grupos mais vulneráveis durante a campanha de Trump) eram acompanhados de frases como “somos maiores do que o medo” ou “defendemos a dignidade” – e haveriam de se tornar virais, tendo sido disponibilizados para descarregamento gratuito na sua página, que incitava as pessoas a usarem-nos na Marcha das Mulheres de Janeiro, o que viria a acontecer.
Na sua obra a faceta de activista confunde-se com o artista gráfico, o muralista ou o ilustrador. O uso pioneiro de autocolantes e cartazes como suportes para a propagação de uma nova estética iconográfica, linguagem onde combina técnicas de propaganda revolucionária, elementos da cultura pop ou da arte urbana, criaram um espólio visual que faz uso da serigrafia, stencil, pintura, colagem ou escultura. Ao mesmo tempo realizou um vasto número de intervenções no espaço público em múltiplos países em suportes como a pintura mural. Temas recorrentes nas suas obras são o capitalismo, as desigualdades socioeconómicas, o controle de armas, o ambiente ou os abusos de poder.
“A arte é uma poderosa ferramenta de comunicação, podendo funcionar tanto no plano emocional como no racional”, reflecte. “Cresci a ouvir bandas como os Clash, Public Enemy ou Rage Against The Machine, que foram capazes de seduzir grandes audiências sem prescindirem de ter algo para dizer. Mesmo quando expunham zanga faziam-no com humanismo. Da mesma forma, no meu trabalho, tento que aquilo que faço funcione como chamada de atenção. Desejo que, emocionalmente, as pessoas se sintam tocadas por uma imagem poderosa, na esperança que isso as leve depois a aprofundar o que lhes é dado a ver de forma mais racional.”
Audiência é coisa que não lhe falta. Fortemente influenciado pela ética faça-você-mesmo, associada às cenas do skate e do punk hardcore, iniciou o seu percurso em 1989, quando ainda estudava na Rhode Island School Of Design, com uma campanha massiva de autocolantes onde se reproduzia a figura do lutador Andre The Giant. Em 1995 essa campanha artística iria evoluir para outra figura icónica acompanhada do slogan OBEY, da qual haveria de resultar, em 2001, a marca Obey Clothing onde a roupa é, digamos assim, utilizada como tela para disseminar a sua arte.
O sistema e como não ser corrompido por ele
Em 2012 teve até direito a uma personagem na série Os Simpsons e há meses lançou uma t-shirt com um retrato de David Lynch, cujos lucros reverteram a favor da fundação do cineasta, dedicada a reduzir os sintomas de ansiedade pós-traumática através da meditação. Trabalha muito, de forma gratuita, com associações ou fundações, o que não o impede de ter muitos detractores que não lhe perdoam o paradoxo de ser crítico do sistema capitalista e de ser bem-sucedido no interior do mesmo. Ele tem percepção dessa contradição e diz que a única forma de lidar com ela é ser totalmente transparente, argumentando que a opção não é estar fora do mercado. Quando muito será operar de outra forma. Na sua opinião é possível situar-se numa fronteira, actuar a partir dos interstícios do sistema, aproveitando os seus buracos negros, precisamente para o denunciar, expondo-o e, dessa forma, contribuindo para a sua transformação. Um dos dispositivos que utiliza com frequência é a ironia.
“Nas peças que criticam o capitalismo, nos textos que as acompanham, sublinho que mais vale gastarem o dinheiro numa outra coisa”, explicita, “se essa peça não criar ressonância em quem a deseja adquirir. Se assim for mais vale desembolsarem dinheiro numa experiência ou num concerto, por exemplo. Desse ponto de vista identifico as contradições desta actividade e tento não ser hipócrita, sendo o mais claro possível.”
Na sua concepção é possível existir num sistema, ser crítico do mesmo e não ser corrompido por ele. “Como é evidente vendo o meu trabalho, mas também faço imensas doações e, acima de tudo, tenho consciência onde estou inserido”, argumenta, acrescentando que tenta ser justo nos preços que pratica, como no facto de operar gratuitamente muitas vezes com grupos de activistas com quem partilha o mesmo tipo de preocupações. “Mas reconheço que é difícil, a partir de um determinado patamar, ser-se imune às críticas no mundo da arte”, concorda. “O que há a fazer é geri-las, ter compreensão do meio onde se está inserido e ser-se límpido.”
Em Portugal irá apresentar Printed Matters, uma série contínua de exposições que tem apresentado pelo mundo, que se foca na importância que o uso de materiais impressos tem tido na sua actividade. Na galeria Underdogs estará patente uma selecção de materiais impressos – incluindo serigrafias sobre papel, edições em madeira e colagens – em conjunto com novos trabalhos, acrescentados a cada nova mostra.
“Não consigo imaginar a minha prática artística sem a influência e o uso da impressão gráfica, até porque algumas das minhas influências não foram pinturas, mas coisas impressas como capas de discos, flyers de concertos, design de t-shirts ou grafismos de skate. Todo o meu trabalho gira à volta das impressões, é o alicerce da minha prática artística e é aquilo que posso partilhar com as pessoas, no sentido em que é algo que elas podem possuir. Revejo-me nessa ideia de democratização da arte.”
Quando descobriu as técnicas de stencil e serigrafia no liceu, usou-as para fazer t-shirts e autocolantes, mas na universidade começou a utilizar a serigrafia para produzir arte. “Já gostava de ilustração, fotografia, colagem e design gráfico em separado, mas com a serigrafia pude sintetizar essas técnicas num produto final integrado, o que me permitiu experimentar, tentando criar imagens que pudessem transitar para a produção serigráfica.” Na actualidade existe quem diga que a impressão tem os dias contados, suplantada pelos suportes digitais, mas não é essa a sua opinião: “A impressão ainda importa. É uma experiência, é qualquer coisa táctil, seja uma obra gráfica impressa na rua ou na galeria.”
Murais em Lisboa
Para Portugal uma das impressões gráficas originais a apresentar foi inspirada numa conversa com o amigo Vhils, que considera ser, a par do francês JR, o artista urbano mais estimulante da actualidade. “Ele partilhou comigo o simbolismo dos cravos na revolução de 1974 e falou-me especificamente da imagem de uma mulher, com uma arma e cravos, o que fez ressonância com um trabalho meu sobre o Vietname, com uma mulher, de metralhadora e flor saindo do cano da mesma. Foi aí que resolvi criar uma peça e um mural inspirado nessa história de Portugal.”
Um dos outros murais a ser pintado em Lisboa resulta de uma colaboração com Vhils, possivelmente representando uma mulher separada em dois, numa alusão ao trabalho desencadeado em We The People, em torno dos mais fragilizados. Stephen irá figurar uma mulher árabe. “Muitos dos trabalhos que faço constituem reflexões sobre acontecimentos nos Estados Unidos, mas que acabam por ser relevantes para outras pessoas, nas mais diversas partes do mundo, porque aí também estão a experienciar os mesmos conflitos”, diz ele, abordando a relação entre o local e o global. “Quero que as coisas que faço sejam universais. No caso desse trabalho a ideia é mostrar que somos todos humanos, que temos muito em comum e que não deveria haver lugar para a islamofobia. Já a peça e o mural com a flor e a arma é aparentemente simbólico apenas para Portugal, mas é também um símbolo de paz universal.”
O envolvimento político da sua obra atingiu o cume quando criou a cartaz HOPE na primeira eleição de Obama. Esse trabalho deu-lhe protagonismo. Mas hoje toda a gente lhe recorda se não terá sido demasiado idealista nas mudanças então entrevistas. “Quando fiz essa peça de Obama estava muito esperançado, é verdade, mas nunca achei que ele, por artes mágicas, fosse resolver todos os problemas. É verdade que não conseguiu diminuir o poder de influência de certos grupos em Washington, nem apostar na economia verde, ou fechar Guantánamo, ou introduzir por completo o serviço de saúde universal, mas é injusto dizer-se que não o tentou e que não fez muitas outras coisas nas quais me revejo. Mas, sim, faltou-lhe habilidade na movimentação do xadrez político e a direita obstrui-o. E esse é um dos grandes problemas nos EUA: o funcionamento disfuncional entre os dois grandes partidos.”
Nas mais recentes eleições, na fase inicial, colocou-se ao lado de Bernie Sanders, e quando este se viu afastado, votou em Hillary Clinton contra Trump, mas sem convicção. “A Hillary nunca me entusiasmou apesar de ter desencadeado algumas acções importantes e de ser astuta. Mas não era isso que era necessário agora. Sanders, pelo contrário, foi consistente ao longo de 35 anos e gostei das suas ideias para reformar financeiramente as campanhas. Fiquei contente por ter tido tanto apoio apesar de não ter sido nomeado.” Na sua apreciação os desiludidos com os falhanços do sistema dividiram-se entre Trump e Sanders. “A diferença é que Sanders faz o seu trabalho porque acredita no serviço público e Trump é apenas um narcisista interessado em ser visto como um conquistador. A sua vitória trouxe à tona o lado mais negro da América.”
Com a ascensão ao poder de Trump espera que mais artistas se façam ouvir – “a arte política nunca foi tão necessária como hoje”, exclama – embora refira de imediato que o seu papel não é dizer como os outros devem actuar. “O mundo da arte às vezes é tramado”, ri-se. “Existe a percepção que muitos dos grandes coleccionadores são também alguns dos homens mais poderosos do mundo, portanto, muita gente prefere não levantar ondas, partindo do pressuposto que se o fizerem ninguém comprará as suas obras.” No seu caso diz-me mais determinado do que nunca em espalhar ideias políticas que lhe façam sentido. Mas não pode ser de qualquer maneira. As divisões são tão acentuadas e Trump beneficia tanto da energia negativa que a solução não é tentar atingi-lo directamente, até porque acaba por se vitimizar. “A escolha”, diz, “é enaltecer os valores humanistas mais essenciais e activar a energia adormecida de democratas ou progressistas. Essa é a maneira eficaz de resistir a Trump. Foi isso que tentámos fazer com We The People, nunca o mencionando, mas nomeando que o medo se combate com a dignidade.”
Ele sabe que entre o público mais jovem tem grande autoridade e foi com essa compreensão que se envolveu numa outra iniciativa, Make America Smile Again, que tentava chamar a atenção para a importância do voto. “Para muita gente, eu inclusive, mas especialmente entre os mais novos, existe esse entendimento que o sistema político está cada vez mais diminuído, mas como não temos outro, a relevância do voto é fundamental. Essa campanha tentava chamar a atenção para isso.” No entanto, assegura, não é fácil fazer passar essa ideia de tal forma o ambiente político é preocupante. “A minha esperança é que as pessoas percebam que temos de reagir e que é difícil bater ainda mais no fundo.”
Os seus críticos, alguns deles provenientes das franjas mais arcaicas da arte contemporânea, dizem que as suas ideias em vez de complexificarem a realidade acabam por simplifica-la em demasia. Ao mesmo tempo sublinham que nem sempre as fronteiras entre propaganda, publicidade, arte e design estão definidas na sua obra. “Tenho noção desses riscos”, começa por dizer, “e sei perfeitamente que a arte é utilizada para persuadir na publicidade ou na propaganda política. Mas o que faço é outra coisa: no meu trabalho uso algumas técnicas e símbolos da comunicação de massas, mas alguns desses elementos estão lá para expor manipulações ou mostrar o que temos em comum enquanto seres humanos.” Uma coisa é certa: não lhe interessa ser críptico ou enigmático. Assume que gosta de ser entendido de forma universal, “sem deixar de lado a responsabilidade social e o compromisso de ser o mais transparente possível ao utilizar essas ferramentas, porque podem ser manipulativas.”
No seu entendimento se a arte conseguir cristalizar uma ideia complexa de forma simples pode conseguir desencadear discussões ou reflexões da maior importância. E isso é ainda mais visível nos dias que correm com o universo digital. “Muitos utilizam essas ferramentas para gerar ainda mais ignorância, mas quem tem alguma coisa a dizer tem também mais possibilidades.” No seu caso concreto, a idade da internet, permitiu-lhe contactar de forma directa com a sua audiência o que é positivo. “É uma forma de partilhar aquilo que faço no ‘mundo real’ para um público que de outra forma não teria acesso a esses trabalhos o que é bom.”
É perceptível, no entanto, que tem uma relação cuidadosa com a comunicação digital. “Às vezes as redes sociais tendem a revelar o que existe de pior em nós e o encorajamento para os padrões qualitativos serem muito baixos existe mesmo”, afiança, para de seguida ser mais benigno, “mas se usarmos esses instrumentos de forma construtiva é possível não degradar o ambiente social e torna-lo mais respirável.”
Por estes dias encontra-se em Lisboa. Viajar é uma constante da sua vida. Mas quando está em Los Angeles, assegura que nunca trabalha menos de 12 horas por dia, dividido entre o estúdio de arte e o de design. O telemóvel está sempre à mão. “Tudo o que faço envolve imensa energia”, diz, dando o exemplo da marca de roupa. “O mundo da moda pode ser irritante, mas ao mesmo tempo permite-me alcançar uma vasta audiência. Cresci com a cultura skate e o punk-rock, cujos signos visuais são a t-shirt e o boné, por isso para mim é um prazer deixar a minha marca também nesses elementos. Mas não é nada fácil mover-me em tantas áreas e fazê-lo da forma mais íntegra possível.” O que o faz continuar, então?
“Creio que é a esperança. Tudo vai dar aí. Sem ela, paralisamos por completo. Às vezes é difícil alcança-la, por vezes desiludimo-nos pelo caminho, mas sem ela nada feito. A esperança é fundamental.”