A armadilha da normalidade
Chega ao meio ano de mandato com a mais baixa aprovação de um Presidente dos EUA dos últimos 70 anos. Donald sobrevive e o fantasma do “impeachment” esfuma-se. Como sair deste “paradoxo americano” que gerar perigo maior, o da anestesia da indignação?
“Ficar será maravilhoso, sair será bom”
(Donald Trump sobre o Acordo de Paris, com Emmanuel Macron ao lado, seis semanas depois desastroso discurso “We’re getting out”)
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“Ficar será maravilhoso, sair será bom”
(Donald Trump sobre o Acordo de Paris, com Emmanuel Macron ao lado, seis semanas depois desastroso discurso “We’re getting out”)
“A presidência americana é, de muitas maneiras, uma espécie de monarquia eleita, através da qual um líder temperamental e intelectualmente desqualificado pode causar imensos danos. É o que está a acontecer neste momento”
(Paul Krugman)
“Os Estados Unidos são formidáveis, não por serem dois países – um azul e um vermelho – quase geograficamente destacáveis, mas por serem tão dados à vitória como à derrota”
(Eduardo Lourenço)
“O ‘América Primeiro’ de Trump tem significado, na verdade, ‘América sozinha’ e, por consequência, ‘América em último’. O que ele fez foi entregar o comando de um interdependente, global e governado pelas regras os problemas globais aos europeus. A Merkel e a Macron”
(Anne-Marie Slaughter)
O maior perigo da presidência Trump é que se caia na armadilha da normalidade. Na passagem do meio ano da tomada de posse do 45.º Presidente dos EUA, que se completa esta quinta, 20 de julho, o primeiro oitavo do mandato de Donald Trump parece já ter provocado uma espécie de anestesia da indignação. As perplexidades, as mentiras, as inconsistências e as confusões foram tantas que já passou a ser “normal” olhar assim para o que vem da Casa Branca, desde 20 de janeiro. Talvez seja esse o maior risco.
É certo que não é possível estar todos os dias a abrir a boca de espanto ou a espumar de raiva com as diatribes do sucessor de Barack Obama e de quem o rodeia.
O grande problema é que os riscos continuam todos lá – e, na verdade, vão-se agravando à medida que o intolerável começa a tornar-se “normal”.
Nunca o deveria ser.
Os Estados Unidos, mesmo estando a perder terreno em alguns domínios para outras potências como a China ou a Rússia, continuam a ser “a nação indispensável”. Mesmo com Donald Trump, apesar de Donald Trump e para lá de Donald Trump.
O modo como a França de Macron acolheu Trump nos recentes festejos do 14 de julho voltou a provar que o exemplo singular do papel dos EUA não desaparecerá, mesmo que seja alguém como Donald a assumir a figura de Presidente.
Ameaça mas não fatalidade
A Nova Desordem Internacional está aí, mas não é uma fatalidade.
Sim, a estabilidade está a perder para o caos. A Liberdade tem tido recuos perante o Autoritarismo. O ‘eu’ e o ‘nós’ estão a prevalecer perante o receio do ‘outro’ e ‘deles’.
Mas os sentimentos mais profundos que movem os eleitorados não desapareceram. As pessoas não deixaram, de repente, de ser tolerantes e abertas à diferença. Estão apenas receosas e um pouco confusas. E até já deram sinais animadores de não quererem cair no autoritarismo populista.
A política é dinâmica e a melhor forma de se reencontrar um bom caminho é perceber que soluções populistas são sempre piores: mais simples, mais injustas, menos capazes de perceber a complexidade das sociedades diversas que caracterizam o quadro atual.
Tudo isto é contraditório.
Trump foi eleito em plataforma populista mas no primeiro meio ano de mandato não conseguiu criar consensos na sociedade americana para pôr em prática o essencial das suas propostas.
Na Rússia, Putin exerce a sua liderança baseado num quadro de autoritarismo sob a capa de lei.
A evolução política em Moscovo será o principal exemplo de como a Ordem Autoritária ganhou pontos sobre a Ordem Internacional Liberal que parecia destinada a dominar as relações políticas do pós-queda do Muro de Berlim.
Vladimir Putin é, em muitos dos principais temas da cena internacional, o ás de trunfo. A peça que ninguém poderá ignorar. Mérito dele, temos que admitir, e como se tem visto no “bluff” constante com que o Kremlin tem lidado com as cada vez maiores suspeitas de que interferiu mesmo na eleição presidencial americana.
Os factos, como recuperá-los?
Se olharmos apenas para os factos, não era suposto que fosse assim.
A economia russa é frágil e dependente de elementos que não controla. Se comparássemos a Rússia com os EUA ou a China apenas nos índices económicos, afirmar que Putin deve ser temido dava apenas para rir.
Mas a forma inteligente como Putin se posicionou nos diferentes temas que dominaram a ordem internacional nos últimos anos fez dele o ator fundamental.
Se nos dissessem há duas décadas, na euforia dos anos 90, que tudo isto estava a acontecer, possivelmente não acreditávamos.
Neste mundo de informação multiplicada e desgovernada, é muito importante olhar para os factos. E os factos dizem-nos que, nos Estados Unidos, a presidência Obama terminou com um desemprego em mínimos históricos, com a classe média a recuperar salários, com mais direitos para as minorias e com índices de criminalidade em forte redução.
O problema é que as perceções de quase metade do eleitorado eram as contrárias: a noção de que a crise de 2008 deixou a América de rastos mantém-se na cabeça de muita gente; a ideia de que ‘os mexicanos’ são violadores e traficantes prevaleceu na mente de muitos; o medo de que ‘os imigrantes’ venham para os Estados Unidos trazer o crime e a insegurança nas ruas e no mercado de trabalho passou a ser um trunfo político poderoso.
Caminhar para o protecionismo e para o fechamento não é bom para quem é barrado mas também não é bom para quem os decreta. Reduz as trocas comerciais, retira oportunidades de emprego, trava o crescimento económico.
Ao contrário do que nos dizem líderes autoritários e populistas como Trump, Putin ou Erdogan, os grandes problemas das grandes potências (Estados Unidos, União Europeia, Rússia, China, Japão, Índia) não são conflituais: são comuns. Alterações climáticas, ameaça do terrorismo, os perigos do nuclear, todos esses grandes temas só podem ser controlados e resolvidos se forem feitos em cooperação, não em rivalidade. Mesmo que Trump queira, atabalhoadamente, tirar os EUA da liderança desse jogo.
Anne Applebaum, Prémio Pulitzer 2004, observou, depois da Cimeira do G20 em Hamburgo: “A Europa já percebeu que, com Trump na Casa Branca, os EUA não são tão confiáveis como eram nas últimas quatro ou cinco administrações. Os europeus contam, agora, menos com os americanos e procuram formas de os contornar e de fazer as coisas sem eles».
A Nova Desordem Internacional pode não estar para ficar. Não é um caminho sem retorno.
A inevitabilidade da integração
A grande maioria das pessoas nos Estados Unidos, na Europa e noutras zonas do globo que conhecemos pior -- mas que terão cada vez mais influência neste mundo interligado -- são generosas e regem-se por valores positivos, construtivos e integradores.
Há uma base que acreditará sempre, e cegamente, nas mentiras e nas ‘fake news’ de Trump. Mas não se trata dos 46% que votaram em Donald em novembro passado. Serão, no máximo, os tais 36% que disseram sempre, mesmo nos momentos mais indefensáveis desta presidência, que Donald tinha razão.
“Nas revoltas nem sempre tem de se provar cientificamente que há injustiças. Basta que os amotinados se julguem mal tratados”, nota Nuno Rogeiro no recente livro “O Pacto Donald”.
O Presidente tem uma base de apoio furiosa e mobilizada – mas limitada em número, num paradoxo que leva a que, neste momento, esteja na Casa Branca uma corrente minoritária da sociedade americana.
Um estudo ABC/Washington Post (10-13 julho) aponta para que apenas 36% dos americanos aprovem a Presidência Trump. 58% desaprova. É a Taxa de Aprovação mais baixa de um Presidente dos EUA ao fim de seis meses em funções dos últimos 70 anos.
Às vezes, um grande erro é a melhor vacina para erros ainda maiores no futuro.
Eleger Trump para Presidente dos Estados Unidos começou por ser uma piada capaz de gerar sketch humorísticos bem divertidos. Já se transformou num erro de consequências bem mais graves do que muitos terão antecipado. Pelo desprestígio do cargo de Presidente dos Estados Unidos. Pela conturbação nas relações com os principais aliados dos norte-americanos. Pelo retrocesso que já está a operar em áreas fundamentais para os pilares da sociedade americana (saída do Acordo de Paris, revogação do ObamaCare, tentativa de Reforma Fiscal que reduza os impostos aos mais ricos, projeto de alargamento e reforço do muro fronteiriço com o México).
Não será o fim do mundo.
Os primeiros seis meses já nos mostraram que, em muitos aspetos, as coisas não vão mudar assim tanto (a forma como os tribunais “mandaram para trás” a primeira versão da Travel Ban foi particularmente tranquilizadora).
Do Presidente dos EUA costumamos esperar liderança, referência e proteção. Do atual inquilino da Casa Branca temos tido mentiras, agressividade gratuita e confusão generalizada.
Sem o exemplo americano, a Europa terá que saber fazer prevalecer os seus melhores valores.
Com o tempo, a estranha proximidade de Trump com Putin deverá tornar-se numa progressiva rivalidade. O primeiro encontro entre os dois, marcado embora por aparentes consensos em temas como a Síria ou a Ucrânia, já sinalizou alguma tensão.
A China, que age nestas relações de força de modo discreto mas certeiro, talvez apareça mais (e isso já se verificou nas palavras de Xi Jinping sobre a necessidade de se manter o Acordo de Paris). Ver um líder chinês a defender um acordo climático, que assinara um ano antes com Obama, diz muito sobre as contradições desta Nova Desordem Internacional. Há que saber viver com ela e é preciso saber sair dela.
Anestesia em Washington DC
O processo político em Washington vive anestesia preocupante. Os democratas estão focados no ‘mantra’ de Trump cair na ingovernabilidade, caso se agravem as acusações contra a Casa Branca nas investigações da “Russia collusion”.
Terá que chegar um momento em que a política americana retome para a agenda questões que verdadeiramente permitam ao eleitorado tomar decisões de relevo.
O primeiro meio ano de Trump adiou a resposta a questões fundamentais: quem poderá suceder a Donald Trump? Pode o Partido Republicano sobreviver ideologicamente a esta presidência ou sofrerá uma total “osmose trumpiana”? Como renascerá o Partido Democrata ao adeus de Obama e ao choque da derrota de Hillary?
A história, ao contrário do que nos tinha dito Fukuyama, nunca pára.
Só falta saber em quem deveremos acreditar mais: em Barack Obama, quando nos dizia que “o melhor está para vir”, ou em Donald Trump, que no momento político mais bizarro de que tenho memória, anunciou, em tom sinistro, na tomada de posse há meio ano, que “ia acabar com a carnificina americana”.
Como, sr. Presidente? A que “carnificina” estaria a referir-se?
Verificação em vez de resignação
Na era da pós-verdade, a chave está nisto mesmo: em questionar, em não deixar passar em claro, em verificar. Há sempre lições positivas a tirar dos piores momentos.
“Isto será apenas uma vírgula”, disse Obama no dia da passagem de testemunho para Trump, numa última tentativa para nos tranquilizar. Mesmo que nem sempre o melhor esteja para vir.
Não podemos escapar a Donald Trump, mas o pior que pode acontecer é que o passemos a aceitar com um encolher de ombros. A América continuará a ser a “nação indispensável” e sobreviverá, certamente, ao desastre de ter escolhido para 45.º Presidente dos EUA alguém que não está à altura do cargo.
Em vez de cairmos na armadilha da normalidade, será preferível mantermos bem elevados os níveis de alerta e de indignação.
Nem tudo terá que mudar, ainda que – contrariando a máxima do príncipe de Falconeri, no “Gattopardo” de Lampedusa -- algo, depois de Trump, não possa ficar totalmente “na mesma”.
Autor de dois livros sobre a presidência Obama e outro sobre Hillary Clinton e a eleição presidencial de 2016