Quem quer vai, quem não quer manda
O Estado resolveu mandar os proprietários fazer o que convinha ao Estado, dizendo que estava a fazer a reforma de uma floresta que não lhe pertence.
Portugal não tem um problema florestal, Portugal tem um problema de gestão das suas paisagens rurais, nas quais se incluem os espaços florestais dos quais, equivocamente, metade não são florestais, são matos.
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Portugal não tem um problema florestal, Portugal tem um problema de gestão das suas paisagens rurais, nas quais se incluem os espaços florestais dos quais, equivocamente, metade não são florestais, são matos.
A raiz do problema está no abandono agrícola que se inicia em meados dos anos 50 do século XX, cujos efeitos são potenciados pela generalização dos adubos industriais, liquidando o valor dos territórios marginais, isto é, das áreas de mato que eram fundamentais para manter a fertilidade dos campos e alimentar o gado miúdo.
Os efeitos deste abandono têm um desfasamento temporal, correspondendo ao tempo necessário à acumulação dos matos e folhada que alimentam os fogos e, a partir de meados dos anos 70 do século XX, o problema dos fogos instala-se definitivamente nas nossas vidas.
Do padrão de fogo tradicional, com fogos muito frequentes, em mosaico e pouco severos, passámos para o padrão de fogo actual, como fogos menos frequentes (por muito que nos pareça o contrário), mais extensos (por ausência das anteriores descontinuidades de combustíveis) e muito mais severos (pela acumulação dos matos e folhada).
À desvalorização dos matos e pastagens pobres, junta-se então o risco de fogo, que coincide com perda de valor dos produtos florestais no mercado internacional.
Os proprietários passam a ver-se confrontados com a necessidade de gerir os matos, o que antes era feito pelo gado miúdo e pela roça dos matos para a cama do gado e agora passa a pesar na conta de exploração da mata, com a perda de valor de alguns dos seus produtos tradicionais, com destaque para a madeira e a resina, isto é, com a perda relativa de rendimento, e com um crescente risco de incêndio.
Racionalmente a grande maioria dos proprietários reduziram o seu investimento na produção florestal, em especial na fileira do pinho (o que, juntamente com os problemas de sanidade, levou o pinheiro a perder meio milhão de hectares) e muitas vezes abandonaram a gestão.
Os que se foram mantendo no sector foram-se especializando no que poderia remunerar o seu trabalho e investimento: 1) eucalipto, nas regiões do país em que tem produtividades razoáveis; 2) cortiça, onde estava o montado instalado e a gestão de matos é feita em grande medida pelas actividades agrícolas e pecuárias; 3) pinheiro bravo onde já estava instalado, não necessitando por isso de grande investimento; 4) castanheiro nas zonas que lhe são mais favoráveis; 5) pinheiro manso onde era possível; e pouco mais.
Se já é um tremendo erro pretender reformar a floresta como se estas diferentes fileiras padecessem todas dos mesmos problemas, é ainda um erro maior não reconhecer as diferenças dentro das mesmas fileiras, em especial na do eucalipto, em que há uma grande área gerida numa lógica extractiva, isto é, praticamente não há gestão, mas consegue-se fazer um corte entre dois fogos; e há uma área menor, gerida intensa e profissionalmente, por grandes proprietários, com destaque para as duas celuloses.
Mas a área de povoamentos é apenas metade do que se convencionou chamar “espaços florestais”, há depois a outra metade que são matos, o que mais arde quase todos os anos (entre metade a dois terços da área ardida em cada ano) e sobre a qual não dizemos nada, não fazemos nada e não temos a menor ideia sobre como a gerir de forma socialmente útil.
Pois bem, sabendo que o problema é este, o Governo (e a Assembleia da República) desenhou uma reforma da floresta orientada para a resolução dos problemas dos proprietários (a larga maioria da área é privada), para o apoio à competitividade que permitisse trazer gestão para os territórios rurais, identificou as falhas de mercado em que o Estado deveria intervir para criar mercados públicos, olhou para a regulação dos mercados que funcionam para saber como os poderia tornar mais eficientes, equacionou uma maior presença no terreno, quer por via das suas funções centrais, por exemplo, desenhando um melhor policiamento para reduzir os roubos de cortiça, de pinha, de madeira, de lenha, de equipamentos, de gasóleo, etc., ou através de uma extensão rural que permitisse elevar a capacidade técnica de gestão e a melhoria da eficiência económica, social e ambiental?
O Governo resolveu deixar de capturar os recursos existentes para a gestão do sector para se financiar, desenhando um modelo de apoio à melhoria da gestão colectiva ou individual do território, ou resolveu transferir parte do dinheiro do mundo rural que hoje está afecto à produção para pagar os serviços de ecossistema que são produzidos pelas fileiras económicas cuja fragilidade põe em risco a produção desses bens colectivos?
Não, o Governo resolveu inventar um problema de propriedade, como se não fosse a falta de competitividade que conduz à ausência de dono, e não a inversa, resolveu inventar um problema com uma das fileiras mais competitivas, a pretexto da sua relevância para a existência de fogos (o eucalipto representa 13% da área ardida, portanto 1% menos que as áreas agrícolas, que representam 14%), resolveu embrulhar-se em discussões bizantinas sobre planos e competências administrativas, bancos de terras cuja viabilidade económica ninguém discute, repisar o problema da dimensão da propriedade quando a maior parte do valor acrescentado da floresta é produzido na região do minifúndio, etc., etc., etc..
Como ao Estado não lhe convinha fazer o que estava perfeitamente ao seu alcance, em matérias que lhe dizem respeito, resolveu mandar os proprietários fazer o que convinha ao Estado, dizendo que estava a fazer a reforma de uma floresta que não lhe pertence.
A probabilidade disto tudo ter qualquer utilidade deve ser mais pequena que a de eu ganhar o euromilhões, mesmo sabendo que eu não jogo.