U2 devolvem-nos a fé no rock e na humanidade em Barcelona

Depois dos Estados Unidos a digressão dos U2 à volta do álbum The Joshua Tree chegou à Europa. Na noite de terça-feira, no estádio Olímpico de Barcelona, deram uma lição de rock e humanismo como é raro ver-se quando se pensa em espectáculos para multidões e fizeram-no sem nostalgia.

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Sai-se de um concerto dos U2 como do visionamento de uma grande produção de Hollywood onde torcemos por um final feliz. Apesar de sabermos da fragilidade daquilo que nos é apresentado, porque a realidade é difícil e complexa, saímos retemperados, acreditando nem que seja apenas por momentos nas mulheres e nos homens deste mundo e na força colectiva do rock. Foi assim na noite desta terça-feira, no repleto estádio Olímpico de Barcelona, num espectáculo enorme onde os irlandeses revisitaram The Joshua Tree, editado há trinta anos. Nessa altura Margaret Thatcher e Ronald Reagan dirigiam o mundo com músculo. Hoje os personagens são outros mas no desnorte e nos conflitos há sintomas com pontos de contacto.

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Sai-se de um concerto dos U2 como do visionamento de uma grande produção de Hollywood onde torcemos por um final feliz. Apesar de sabermos da fragilidade daquilo que nos é apresentado, porque a realidade é difícil e complexa, saímos retemperados, acreditando nem que seja apenas por momentos nas mulheres e nos homens deste mundo e na força colectiva do rock. Foi assim na noite desta terça-feira, no repleto estádio Olímpico de Barcelona, num espectáculo enorme onde os irlandeses revisitaram The Joshua Tree, editado há trinta anos. Nessa altura Margaret Thatcher e Ronald Reagan dirigiam o mundo com músculo. Hoje os personagens são outros mas no desnorte e nos conflitos há sintomas com pontos de contacto.

Já se sabe. Um concerto dos U2 é também um acto político. Não existem propriamente campos em confronto. Digamos que eles são pela humanidade. Pela possibilidade de coabitação para além de todas as diferenças. Pelo poder dos sonhos. Bono recorda muitas vezes que o pai passava o tempo a dizer-lhe: “não sonhes, porque te vais desiludir.” Ele, talvez por reacção, não parou de ter sonhos megalómanos, sendo o maior deles mudar o mundo. Um desígnio nunca satisfeito porque é um processo. Ele sabe-o. Mas no processo as transformações acontecem.

Talvez o que os U2 nunca tivessem projectado é que tantos anos depois do início, no final dos anos 1970, continuariam juntos, percorrendo o globo continuamente em concertos para multidões – e a The Joshua Tree Tour é desde já a digressão mais bem-sucedida de 2017. Fazem-no numa altura em que tanto se diz que o rock, enquanto ideal de comunhão, perdeu quase por completo a sua força. No mercado do entretenimento parece ser apenas mais um produto pronto a consumir.

Mas no patamar onde se situam – na comunicação de massas – não se vislumbra um outro grupo rock que continue a ter a fé tão intacta como eles e que se goste tanto de desafiar. Como tantos outros podiam fazer render o legado e já está. Mas eles vão a jogo. Têm consciência que a sua actividade é também feita de paradoxos, como esse de frequentarem os corredores do poder e criticarem-no, mas não se escondem, assumem-no, com os riscos inerentes. E por isso, às vezes, chamuscam-se, como aconteceu na operação de lançamento do último álbum com a Apple. Em certos círculos são o grupo que se adora odiar. E no entanto renascem sempre.

A presente digressão podia ser apenas um acto de nostalgia. Puro engano. E isso é logo perceptível nos primeiros minutos. Entram, depois do aviso de início de concerto com The whole of the moon dos The Waterboys, com Sunday bloody Sunday, com Larry Mullen Jr. a dirigir-se sozinho para a bateria num pequeno palco situado no meio da multidão. Depois de se ouvir o ritmo marcial, os três restantes juntam-se-lhe. Não há quase iluminação a incidir sobre eles. Obrigam a audiência a concentrar-se apenas neles. Não há telemóveis no ar. Nenhum aparato cénico. Apenas quatro músicos, abandonados, no meio de um estádio com cerca de 50 mil pessoas, e a pujança contagiante das canções. Durante a primeira meia hora irá ser assim.

E foi um início simplesmente avassalador, como se os U2 quisessem mostrar que não precisam de efeitos espectaculares nem de grandes encenações, para fazer acontecer um rol imenso de emoções. E é verdade. A seguir veio New Year’s Day e uma interpretação magnífica de Bad, com Bono na introdução a saudar Espanha, “país de poetas, artistas, pintores, arquitectos, sonhadores”, ao mesmo tempo que lembrou que, neste momento, se encontra patente em Barcelona a magnífica exposição retrospectiva (David Bowie Is), de “um outro grande sonhador”, adaptando versos de Heroes de Bowie: “We all could be heroes just for one night.”

Quando se fazem ouvir os primeiros acordes de Pride (In the name of love) o estádio inteiro faz-se ouvir em rugido, enquanto Bono alude a um outro sonho cada vez mais posto em causa (“O sonho de uma Europa unida”), antes de entrarmos em The Joshua Tree, no sonho americano que é afinal também ele uma adaptação do grande desígnio europeu. Até aí o grupo havia-se mantido no pequeno palco. Quando se fazem ouvir os primeiros acordes de Where the streets have no name dirigem-se para o palco principal, com um ecrã  a toda a largura do cenário, da autoria de Willie Williams, ladeado pelo desenho de uma árvore. É a apoteose.

A guitarra de The Edge é serpenteante e a voz de Bono vai até aos limites. Um estádio inteiro treme. No ecrã panorâmico gigante começam a passar então as incríveis imagens captadas pelo fotógrafo e realizador de cinema Anton Corbijn, velho cúmplice do grupo, na Califórnia, mais exactamente no parque de Joshua Tree e Zabriskie Point, no vale da Morte. Daí para diante, por diversas vezes, somos confrontados com elas. É a América mítica que nos é devolvida, a integridade dos pioneiros, mas também o sabor a pó, o deserto, a desesperança destes tempos.

Os U2 não desejam ficar presos no passado. E as imagens também o reflectem. Há naturalmente alusões ao poderoso imaginário iconográfico de The Joshua Tree, mas as metáforas são do presente. As ruas sem nome de Where the streets have no name são uma longa recta que rasga o deserto com migrantes a caminharem sob o sol e de 1987 somos transportados para 2017, para a América com muros de Trump e para a Europa em dificuldade com os refugiados sírios.

I still haven’t found what i’m looking for e With or without you são tocadas sem interrupções, com o som profundo do baixo de Adam Clayton e a incomparável sonoridade da guitarra de The Edge em comunhão perfeita, antes de entrarmos na dissonância de Bullet the blue sky, com a secção rítmica desvairada, o falsete de Bono e a estridência ruidosa da guitarra de The Edge a garantirem um dos melhores momentos da noite, antes do cantor abandonar a voz para se ocupar da harmónica na terna Running to stand still, anunciado uma fase mais planante do cerimonial.

É o que acontece com Red Hill mining town ou One tree hill, antes do desenho de guitarras de The Edge se fazer ouvir outra vez a grande altura em In god’s country, com Bono a voltar a recordar num dos versos que “We need new dreams tonight”. Exit, uma canção sobre a mente de um assassino, é antecedida de uma colagem de excertos de filmes clássicos, com os diálogos adulterados e menções a muros, com Trump a ser visado de forma directa. Em Trip through your wires Bono regressa à harmónica e Mothers of the disappeared significa o final emocional da apresentação do álbum, com o cantor a proclamar bem alto e em castelhano: “El Pueblo vencerá!

No encore de seis temas regressam a diversas fases mais recentes da sua carreira, com Miss Sarajevo a ser transformada em Miss Síria, com Omaima, uma jovem refugiada de 15 anos do campo jordano de Zaatari, a ser a protagonista, enquanto se vislumbram cidades dizimadas. “Sempre que os direitos humanos não são violados”, grita Bono, isso pode ser um Beautiful day, senha para se ouvir a canção do mesmo nome, logo seguida de Elevation, ou Vertigo, com alusões a Rebel rebel de David Bowie, ou Ultra violet (Light my away), trazendo a catarse rock & roll de regresso ao palco, com o quarteto a mostrar grande energia, apesar das duas horas e meia de espectáculo, e o estádio a descarregar toda a adrenalina entretanto acumulada.

Pelo meio Bono diz que “querem agradecer às suas mulheres”, nomeando-as, mas de imediato percebe-se que o seu cumprimento é universal, com o ecrã panorâmico a encher-se de dezenas de rostos (de Anne Frank a Patti Smith, das Pussy Riot a Malala) e ele a evocar todas as mulheres que “resistem, lutam e se afirmam sem medos.”

No fim um clássico, One – com Bono a citar Nelson Mandela, para recordar que as mudanças fazem-se a partir dos movimentos de massas e não com meras afirmações de personalidade – e uma balada serena, The little things that give you away, que deverá integrar o novo álbum, possivelmente a editar este ano, forma de reafirmarem que revisitar um lançamento tão marcante como The Joshua Tree lhes interessa mas apenas para reflectirem o presente, porque o seu horizonte é o futuro.

Hoje os U2 são uma instituição. Mas ouvi-los em palco continua a ser um desafio. Não desistem de apresentar espectáculos cenicamente e tecnologicamente desafiantes – ao seu nível são, de longe, os melhores, produzindo sofisticação para transmitir simplicidade – mas sem nunca descurarem o calor, a alma, das canções.

Num mundo cada vez mais entregue ao cinismo é revitalizante assistir ao que têm para propor. Bono dizia que o pai parecia estar sempre à espera do momento em que o filho iria falhar. Fora educado dessa forma. Mas Bono substituiu o medo pela fé e pelo desejo de transcendência. Sabe do que fala. Não espanta por isso que, ao longo da noite em Barcelona, não tenha parado de dizer: é preciso continuar a sonhar.

 

O PÚBLICO viajou a convite da Universal