Humanos go home
Um blockbuster que faz “guerra” ao filme de super-heróis: Planeta dos Macacos: A Guerra.
Começa como se estivéssemos no Platoon, ou no Full Metal Jacket, ou em qualquer outro “clássico” da filmografia vietnamita de Hollywood: uma selva (muito verde, que será a tonalidade dominante da fotografia), uma coluna de soldados americanos, os capacetes cheios de inscrições de auto-motivação agressiva (monkey killer), uma brusca cena de combate. Mas do outro lado, macacos. Em todo o caso, se a alguém falhasse a analogia, os soldados referem-se ao inimigo como os “kongs”, referência à mitologia simiesca de Hollywood (o “King”) que vale pela homofonia com a palavra “cong”, referência óbvia à guerra do Vietname. Até podemos pensar, durante a sequência inicial, que estamos num apogeu maniqueísta da desumanização do “inimigo”, convertido num bando de primatas. Mas rapidamente se percebe que é exactamente o contrário, e que o facto de o câmara começar por seguir os humanos é só um trompe l’oeil, a transferência do ponto de vista não demora. E então acontece uma coisa deveras extraordinária, para mais num grande franchise hollywoodiano (este é o terceiro episódio da retoma do Planeta dos Macacos, depois da primeira série iniciada por Franklin Schaffner nos anos 60 e do remake ocasional de Tim Burton, tão injustamente menosprezado, em princípios dos 2000): o espectador é forçado à identificação com “o outro”, tão radicalmente “outro” que nem pertence à mesma espécie, e a encarar todo e qualquer ser humano como uma ameaça letal.
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Começa como se estivéssemos no Platoon, ou no Full Metal Jacket, ou em qualquer outro “clássico” da filmografia vietnamita de Hollywood: uma selva (muito verde, que será a tonalidade dominante da fotografia), uma coluna de soldados americanos, os capacetes cheios de inscrições de auto-motivação agressiva (monkey killer), uma brusca cena de combate. Mas do outro lado, macacos. Em todo o caso, se a alguém falhasse a analogia, os soldados referem-se ao inimigo como os “kongs”, referência à mitologia simiesca de Hollywood (o “King”) que vale pela homofonia com a palavra “cong”, referência óbvia à guerra do Vietname. Até podemos pensar, durante a sequência inicial, que estamos num apogeu maniqueísta da desumanização do “inimigo”, convertido num bando de primatas. Mas rapidamente se percebe que é exactamente o contrário, e que o facto de o câmara começar por seguir os humanos é só um trompe l’oeil, a transferência do ponto de vista não demora. E então acontece uma coisa deveras extraordinária, para mais num grande franchise hollywoodiano (este é o terceiro episódio da retoma do Planeta dos Macacos, depois da primeira série iniciada por Franklin Schaffner nos anos 60 e do remake ocasional de Tim Burton, tão injustamente menosprezado, em princípios dos 2000): o espectador é forçado à identificação com “o outro”, tão radicalmente “outro” que nem pertence à mesma espécie, e a encarar todo e qualquer ser humano como uma ameaça letal.
Todo e qualquer ser humano? Exageramos, há um ser humano “importado” numa das cenas iniciais para o grupo de macacos, uma miúda afásica, estranha a qualquer linguagem humana (e portanto, “salvável”). É bastante duro como condenação — e diríamos que Planeta dos Macacos: a Guerra se abre a todas as parábolas políticas, ecológicas ou históricas (o que os homens pretendem é o extermínio puro e simples da população símia). População símia que Matt Reeves, depois de começar por filmar como um eco do Vietname, encena como a imagem concentrada e metafórica de todos os povos acossados e obrigados ao abandono das suas terras — sem ir mais longe (porque se podia ir mais longe na exploração do imaginário convocado pelo filme), também “são”, por exemplos, os índios, os índios americanos, lembrados de forma bastante explícita nos inúmeros “planos de western” disseminados pelo filme (incluindo a paisagem de algo que se não é o Monument Valley é uma alusão mais do que explícita).
Deslizando entre o filme de guerra e o western, muito mais presentes, enquanto géneros de referência, do que a ficção científica, o outro aspecto surpreendente, e razoavelmente subversivo, deste Planeta dos Macacos (e se é “subversivo” é justamente por ser um blockbuster, não um objecto pensado para uma audiência de “nicho”), é retirar desses géneros a sua essência “comunitária”: os macacos têm um líder (esse complexo César, extraordinária personagem, cujo nome remete menos para o imperador romano do que para o universo shakespeareano latente no desenvolvimento político da intriga), mas é o grupo de personagens que se impõe, como se soubessem que não há nenhum super-herói que os venha salvar. Ou há, mas está do outro lado: é a personagem do Coronel interpretado por Woody Harrelson em óbvia citação do Kurtz do Apocalypse Now! (uma inscrição na parede lembra, se calhar escusadamente, o filme de Coppola), de cabeça rapada e discurso militarista, e o Hey Joe! de Jimi Hendrix (mais música do tempo do Vietname…) a ribombar entre as paredes do seu bunker, personagem que é a máxima inversão estereotípica operada pelo filme.
Um blockbuster que faz “guerra” ao filme de super-heróis, quer no seu tratamento de personagens e situações, quer na evidente inteligência com que administra o imaginário que convoca e o seu potencial alusivo. Fazia tempo — desde o último Missão Impossível, no ano passado — que não se ia ao cinema ver um destes “filmes de Verão” sem se sair frustrado. Há vida inteligente no cinema de franchise, e é dos macacos.