Chrissie Hynde mostra aos jovens Pretenders como se faz
Ela sabe que o público gosta de ouvir as canções do passado dos Pretenders, mas não prescinde também de apresentar as novas, gravadas com Dan Auerbach dos Black Keys. Foi assim em Paris. Deverá ser assim, no dia 19, no Parque dos Poetas em Oeiras.
São um caso estranho os Pretenders, o grupo que ao longo dos anos se transformou no veículo de expressão da cantora, compositora e guitarrista Chrissie Hynde. Nunca alcançaram a credibilidade artística de outras bandas da geração pós-punk como os Clash ou Talking Heads, talvez porque nunca lançaram um daqueles álbuns que define um antes e um depois para a música popular, mas canções de sucesso nunca lhes faltaram, na linha dos Blondie ou dos The Police, misto de espontaneidade e concisão punk e simplicidade e acessibilidade melódica pop.
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São um caso estranho os Pretenders, o grupo que ao longo dos anos se transformou no veículo de expressão da cantora, compositora e guitarrista Chrissie Hynde. Nunca alcançaram a credibilidade artística de outras bandas da geração pós-punk como os Clash ou Talking Heads, talvez porque nunca lançaram um daqueles álbuns que define um antes e um depois para a música popular, mas canções de sucesso nunca lhes faltaram, na linha dos Blondie ou dos The Police, misto de espontaneidade e concisão punk e simplicidade e acessibilidade melódica pop.
Também não é vulgar serem liderados por uma cantora e guitarrista americana que fez carreira em Inglaterra e é mais celebrada na Europa. E inusitado é também terem estado sem editar durante quase dez anos, apesar do registo assinado em nome próprio de Hynde de 2014, regressando o ano passado com um álbum produzido por Don Auerbach dos Black Keys, que acabou por gerar uma sonoridade que vai ao osso do rock & roll, criando em parte uma ligação com o álbum de estreia de 1979.
Mais normal é o facto de serem cabeças-de-cartaz de um festival com jazz no nome, o EDP Cool Jazz, que já habitou o público a figuras que pouco ou nada têm a ver com a designação no sentido mais essencialista, na linha de outros eventos de Verão, como o conhecido festival jazz de Montreux, na Suíça, que aposta nos mais diversos géneros musicais. Os Pretenders actuam a 19 de Julho no Parque dos Poetas, Oeiras, antecedidos por Rita Redshoes, num evento onde actuarão ainda Maceo Parker, Maria Gadú, Jake Bugg, Jamie Lidell, Luísa Sobral ou Jamie Cullum.
Só não digam a Hynde que irá actuar num evento onde estarão muitas pessoas da sua idade. Não porque tenha qualquer problema com isso. É o contrário: ela só se chateia quando lhe vêm com a retórica de que o rock é coisa de jovens para jovens, como se não fosse possível a um músico rock continuar a operar para lá dos sessenta sem que isso seja o assunto central. Se ela fosse do jazz não seria questão. E da clássica muito menos.
Mas ela é do rock. Sempre foi. E continua a ser, como constatámos em Paris na sala Pleyel onde os Pretenders tocaram recentemente. Não é apenas o visual de sempre – aquelas calças justas à perna e a t-shirt de Elvis Presley não enganam – ou a guitarra empunhada com uma autoridade natural, nem o facto das novas canções, pertencentes ao álbum Alone (2016), serem das mais directas e cruas que alguma vez fizeram, remontando às raízes profundas do rock. É outra coisa. É aquilo que ela chama de “atitude”, uma forma de estar na vida “sem merdas”. Ou seja, sem artifícios. Sim, é isso. Hynde não tem nada a esconder. Como ela dizia ao The Guardian o ano passado: “sou apenas uma profissional da música na estrada com uma banda.”
É quase impossível não simpatizar com essa postura. Os Pretenders não querem ser mais do que são: um grupo rock consciente do seu lugar, sabendo que a maior parte do público que os vai ver quer ouvir os sucessos do passado, mas porque mantêm a chama do desafio ainda acesa, tentam pôr-se em causa a si próprios e por essa razão existe um novo álbum. Da mesma forma, sabem que não fazem as delícias dos que procuram com sofreguidão a novidade, mas isso em vez de os amargurar, diverte-os. “Deve ser porque não somos suficientemente artísticos, nem temos grande pinta”, lança às tantas Hynde, irónica, tentando explicar a si própria porque é que a sua música não passa numa rádio parisiense que ela diz ouvir e gostar muito.
Logo aos primeiros temas mostram ao que vêm com Alone e Gotta wait, dois dos mais badalados do último álbum, com ela a surgir em palco com ginga rock & roll, olhando o público em atitude de desafio e guitarra a tiracolo, atacando as canções sem delongas, com acordes estridentes e marcação vincada do ritmo, como se quisessem mostrar que estão bem despertos. A letra de Alone é todo um programa, podendo ser lida como uma ode à solidão das cidades, embora cantada por ela pareça mais um grito de independência, com ela a proclamar: “Yeah, i like it, i like being alone / What are you gonna do about it? / I’ll do whatever i want.”
Ela, que foi casada com dois conhecidos músicos – Ray Davies dos Kinks e o cantor Jim Kerr dos Simple Minds –, parece agora, aos 65 anos, sentir-se muito bem na sua pele, apesar de cantar I hate myself, numa das novas canções. De resto continua vegetariana como sempre. Não tem paciência para cerimónias como os Grammy ou para rituais como o Rock and Roll Of Fame, apesar dos Pretenders lá estarem. “Isso é tudo o que o rock não é”, diz. Só lhe interessa o trabalho e continuar sem olhar para trás. Votou pela manutenção do Reino Unido na União Europeia. Mas nas entrevistas é nítido que não tem filtros para filosofar sobre feminismo, sobre ser ou não um modelo para as raparigas mais novas que querem começar uma banda, ou sobre política. A sua atitude é quase sempre: “Oiçam a minha música, está lá tudo.”
Depois da entrada de rompante com temas novos, surgem Message of love, Don’t get me wrong, Kid ou Hymn to her, daqueles singles do início da carreira que toda a gente conhece, e o público de pé em frente ao palco agita-se, o mesmo sucedendo para quem enche o espaço e está sentado mais atrás. A ladear Hynde, que se movimenta com grande desenvoltura, tocando nas mãos de quem está próximo, encontram-se dois músicos no baixo e guitarra que, como insinuará mais tarde, podiam ser seus filhos.
O guitarrista é quem dá mais nas vistas. É um virtuoso. Principalmente na abordagem aos temas mais novos, expande as possibilidades da guitarra, em solos que poderiam soar excessivos, mas que naquele contexto acabam por encaixar. Lá atrás, mas subido, em grande destaque, está Martin Chambers e a bateria, o outro membro original do grupo que resta. Os dois restantes – o baixista Pete Farndon e o guitarrista Honeyman-Scot – já faleceram no início dos anos 1980, ambos de overdose.
Neste contexto não espanta que ao baterista seja dado grande destaque também este não se faz rogado, mostrando estar em forma, tendo até direito a um longo solo, com Hynde, divertida, às tantas a olhar para o relógio, em gesto de censura. Se é verdade que ela é sinónimo de Pretenders, é justo dizer-se que o guitarrista Honeyman-Scott foi determinante no início do grupo, que acabou por ser a fase da qual provém a maior parte das canções que ainda hoje perduram na memória (Stop your sobbing, Talk of the town, Back on the chain gang). Depois da sua morte dir-se-ia que se transformaram numa banda mais vulgar, embora a determinação de Hynde tenha feito com que a aura perdurasse.
Originalmente de Akron, no Ohio, Estados Unidos, ela mudou-se para Inglaterra aos 22 anos. O jornalista musical Nick Kent ajudou-a para que, a meio dos anos 70, conseguisse escrever no New Musical Express, altura em que também trabalhou na boutique Sex de Malcolm McLaren e Vivienne Westwood, antes de começar a tocar em bandas, para acabar por formar, em 1978, os Pretenders. Os dois primeiros e homónimos álbuns, de 1979 e 1981, continuam a ser os mais conseguidos. Claro que depois vieram outros sucessos – Don’t get me wrong (1987) ou I’ll stand by you (1994) –, todos apresentados no concerto, mas dir-se-ia que as linhas norteadoras foram definidas nesses anos iniciais, com Hynde a reformular o grupo ao longo dos anos com os mais diversos músicos. Em 2014 resolveu assinar um álbum a solo, Stockholm, e contam as crónicas que, o ano passado, estaria a pensar voltar nessa condição, mas durante as gravações com Dan Auerbach, e alguns músicos que este convidou para as sessões, percebeu que o que tinha entre mãos era, afinal, o som clássico dos Pretenders.
E é nessa condição que tem andado em digressão, apresentando um concerto de uma eficiência que surpreende, que tanto pode ir de baladas envolventes recentes como Let’s get lost, ou mais antigas como I got to sleep, até canções de balanço rítmico como Brass in pocket, até às mais incisivas e roqueiras como Boots of chinese plastic, Thumbelina, The wait ou a final Middle of the road – num encore de quatro temas – com Hynde a mostrar os seus dotes também na harmónica, para além da voz, que mantém as suas propriedades intactas. Mas não vale a pena recordarem-lhe isso, porque ela responderá que ao fazerem-no já estão a ser condescendentes. E ela não tem paciência para isso. “Quando um pintor tem vontade de pintar, pinta, independentemente da idade”, dirá. “Com um músico é exactamente o mesmo. Quero apenas continuar a fazer o que me apetece enquanto tiver prazer em fazê-lo.” É isso. Chrissie Hynde não quer ser modelo para ninguém, mas anda há 40 anos a mostrar como se faz.
O PÚBLICO viajou a convite do EDP Cool Jazz