Haverá entusiasmo sem ilusão?
Patrícia Portela volta a exercer a sua acção inventiva e rebelde sobre os géneros literários, as modalidades da expressão, os desempenhos esperados. Um exercício de especulação e atiçamento atirado sobre um quotidiano complexo e enigmático: Dias Úteis.
Não é tão flagrantemente nova como se poderia pensar, a noção de jogo aplicada ao texto literário. Como é óbvio, as modernidades conferiram-lhe uma feição mais completa (e complexa), mas num livro como Le Neveu de Rameau, de Denis Diderot (para nada dizer de um Sterne, por exemplo), já se sentia o irresistível apelo da ilusão e do logro de quem escreveu que “a verdade é, com frequência, fria, vulgar e plana”. Essa atracção pela revisão permanente das regras que talvez tivesse levado o mesmo Diderot a escrever, num dos seus artigos da Enciclopédia: “Haverá entusiasmo sem ilusão?” Naquele “poema”, como o designou Carlyle, os deslizamentos da verosimilhança (o sobrinho existiu, mas não bem assim) e da composição (intromissões constantes, desfalecimentos sucessivos do edifício narrativo), o próprio título oblíquo e irónico, o hibridismo entre diálogo dramático e romance — todos estes aspectos parecem configurar um antepassado verosímil para Dias Úteis, de Patrícia Portela.
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Não é tão flagrantemente nova como se poderia pensar, a noção de jogo aplicada ao texto literário. Como é óbvio, as modernidades conferiram-lhe uma feição mais completa (e complexa), mas num livro como Le Neveu de Rameau, de Denis Diderot (para nada dizer de um Sterne, por exemplo), já se sentia o irresistível apelo da ilusão e do logro de quem escreveu que “a verdade é, com frequência, fria, vulgar e plana”. Essa atracção pela revisão permanente das regras que talvez tivesse levado o mesmo Diderot a escrever, num dos seus artigos da Enciclopédia: “Haverá entusiasmo sem ilusão?” Naquele “poema”, como o designou Carlyle, os deslizamentos da verosimilhança (o sobrinho existiu, mas não bem assim) e da composição (intromissões constantes, desfalecimentos sucessivos do edifício narrativo), o próprio título oblíquo e irónico, o hibridismo entre diálogo dramático e romance — todos estes aspectos parecem configurar um antepassado verosímil para Dias Úteis, de Patrícia Portela.
Um livro com um prefácio mais longo do que os contos que o compõem; contos que se iniciam com uma “didascália” e terminam com um “epitáfio de domingo para o dia seguinte”, que não o é, realmente (como talvez seja ocioso afirmar), a que se junta uma nota de rodapé. Acresce que os dias úteis do título apenas têm confirmação no facto de cada conto ter por nome um dia da semana útil — ainda assim, o último deles chama-se “porque hoje é sábado”. No entanto, não é só essa subversão do calendário, o que importa reter, a esse respeito, mas a ironia quase paralisante de considerar úteis os dias descritos e narrados por estes contos. Dias Úteis é a denúncia política de um tempo que projectou uma utopia que redundou em distopia — “a selva que é a cama onde nos deitamos, o ar que com esforço respiramos, a porqueira que sem mãos a medir produzimos” (p.14). São dias congelados por rotinas imobilizadoras — “levo uma vida habitual de segunda a sexta” (p.43) (uma colocação cruelmente precisa do adjectivo define o corte da pena efectiva). Dias atordoados na voragem da massificação — “multiplico-me por mil iguais a mim que por sua vez se multiplicam por mais mil iguais a mim, e mais mil e mais mil, e mais mil, até quase me dissolver por completo e sem um gemido na massa infinita do tempo (e do open space onde trabalho)” (p.44). Dias suspensos por fobias, complexos e ressentimentos — “A mala que trago comigo abre-se, riscam-se as faixas dos discos preferidos, rasgam-se as fotografias dos dias memoráveis, corta-se o telefonema que não se atendeu, cospem-se os esgares e os restos dos almoços desencontrados, rebate-se a conversa que não podia ter sido a última, dissolve-se o prazer, dissolve-se o lazer do prazer e tudo o que se adiou até ficar contaminado.” (p.68).
Não se trata propriamente de desencanto, mas antes de trabalhar a matéria humana a partir de uma certa noção de desespero que pretende espevitar uma reacção que sacuda o pó acumulado pela inércia. É assim que o acúmulo de lugares-comuns da fraseologia e do quotidiano se torna uma arma cortante, arremessos contra a violência psicológica (e física) de um dia-a-dia autodestrutivo — “Volto a soldar o coração ao peito sorvendo uma canja de galinha acompanhada com pão recesso como se fosse sopa de cavalo cansado. Às 10 da noite vou ter com o Inconformismo com quem vou ao café todos os dias. Fazemos um novo plano para nos tornarmos invencíveis.” (p.45) O cliché surge, assim, como uma técnica de lidar com o mais poderoso cliché que é a vida de todos os dias. Explorá-la como caricatura de si mesma, como o excesso do que nela é desmedido, é um dos dispositivos que este livro põe em funcionamento. O mito da genuinidade e do produto de origem certificada, por exemplo, surge exemplificado, em duros traços derrisórios, numas chuteiras bordadas “à pata por éguas minhotas muito velhinhas” (p.19). Como a baça parada de siglas que governam a vida moderna se vê descrita em duro elenco — “todos os PIB, todos os VIP e todos os NIB” (p.23) — que afirma um poder que se quer pôr em causa, quando mais não seja pelo seu absurdo, ou precisamente por ele.
A protagonista do conto “quinta-feira” é uma espécie de Everyman, no sentido em que encarna as muitas misérias e escassíssimos esplendores do género humano numa época de planetária globalização. Um panorama que, de resto, o conto desenvolverá até o subverter e, em última análise, inverter, promovendo certo regresso ao tribalismo e à troca por troca, ao “primitivismo” da luta pela sobrevivência aquém dos degraus civilizacionais já subidos. Um mundo de metamorfoses tão permanentes quanto avassaladoras, onde tudo é outra coisa e tudo se equivale. Mundo nivelador e rasante que a personagem principal correrá, em desespero de causa, para contrariar, até um ponto em que há uma espécie de eterno retorno onde parece subsistir mais dúvida do que aclaramento — “E eu fiquei ali parada. A confundir-me com o chão.” (p.88)
Como sucedia em A Colecção Privada de Acácio Nobre (Caminho, 2016), com o princípio de indeterminação — de género literário e outro — que o percorria (ou em O Banquete, Caminho, 2012, com a presença do discurso científico), Dias Úteis constitui uma acção de desmontagem de vários atributos do sistema literário: o confessionalismo, a grelha dos géneros e das artes, as quadrículas onde (não) assentam as categorias da narrativa, a solidez e fiabilidade da voz narradora. A introdução de uma didascália no seio de um texto narrativo lembra uma anotação de Vergílio Ferreira, feita à margem das tábuas dos géneros literários, que falava de um híbrido. É um pouco isso que Patrícia Portela parece procurar: não assumir uma via unívoca, mas unir ensaio e ficção, drama e deriva num texto que seduz todos os géneros para depois prescindir de uma inclusão cabal e redutora em qualquer deles.