"Não estamos contra a sociedade. Estamos contra o racismo institucional"

Dois dos seis jovens da Cova da Moura dão a sua primeira entrevista pública depois dos 18 polícias da esquadra que os deteve terem sido acusados de tortura e racismo. Criticam os partidos políticos e o Alto Comissariado para a Imigração.

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Nuno Ferreira Santos

Flávio Almada já foi, diz, abordado na rua de forma intimidatória por polícias. Celso Lopes pensa várias vezes: como irá explicar o que aconteceu ao seu filho de meses, que dizer sobre como foi feita a cicatriz que tem na perna, resultado de uma bala atirada na esquadra no dia 5 de Fevereiro de 2015? Um e outro temem retaliações. “Claro que isto dá medo”, diz Flávio Almada.“Porque sabemos que há impunidade”, continua Celso Lopes.

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Flávio Almada já foi, diz, abordado na rua de forma intimidatória por polícias. Celso Lopes pensa várias vezes: como irá explicar o que aconteceu ao seu filho de meses, que dizer sobre como foi feita a cicatriz que tem na perna, resultado de uma bala atirada na esquadra no dia 5 de Fevereiro de 2015? Um e outro temem retaliações. “Claro que isto dá medo”, diz Flávio Almada.“Porque sabemos que há impunidade”, continua Celso Lopes.

São dois dos seis jovens da Cova Moura que tinham sido acusados de tentativa de invasão da esquadra de Alfragide pela PSP. Em tempos foram fotografados em entrevistas à comunicação social, mas agora preferem não dar oportunidade de os seus rostos serem ainda mais reconhecidos. Também preferem não entrar em pormenores sobre os acontecimentos, antes do julgamento. Acreditam que este é um processo que vai durar anos a concluir. Reagem de forma contida ao despacho do Ministério Público conhecido esta semana, no qual o procurador é peremptório a acusar 18 agentes da PSP da esquadra de Alfragide: “de forma inequívoca e sem sombra de dúvida” conclui que os factos descritos nos autos da polícia não se verificaram. Os polícias são acusados do crime de tortura, agravado por ódio racial, prática dos crimes de falsificação de documento agravado, denúncia caluniosa, injúria agravada, ofensa à integridade física qualificada, falsidade de testemunho, tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos e sequestro agravado.

Há dois anos e meio, o PÚBLICO entrevistou Flávio Almada e Celso Lopes, ambos com 34 anos. Relembrando o episódio: um jovem foi detido pela PSP na Cova da Moura, acusado de mandar pedras ao carro de polícia. Na detenção, uma mulher que estava à janela foi atingida por um tiro de bala de borracha disparado pela polícia. Mais tarde, vários amigos do detido, entre eles Flávio Almada e Celso Lopes, foram à esquadra de Alfragide saber o que aconteceu e acabaram lá dentro. Relataram tortura, violência física e racial. Um dos polícias disparou para a perna de Celso Lopes. Ficaram detidos durante 48 horas. O Ministério Público chegou a pedir a prisão preventiva por resistência e coacção a funcionário dos seis. Dois dias depois, o Tribunal de Sintra libertou-os, determinando a medida de coacção menos gravosa, o termo de identidade e residência.

Os seis apresentaram uma queixa-crime por tortura. A Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI) abriu um inquérito à actuação da PSP, mas acabou por arquivar as queixas contra sete de nove agentes que têm processos disciplinares: apenas dois têm sanções, e esses recorreram, disse Margarida Blasco, inspectora-geral.

“A nossa vida que não era doce, virou um inferno. Tenho dores de cabeça”, diz Flávio Almada. “Algo ficou lá [na esquadra]. Vamos carregar isso para o resto da vida”.

Conversa com os dois na noite de quinta-feira, num banco de jardim da Cova da Moura, na Amadora - que transcrevemos em discurso directo.  

Celso Lopes 

“Aquilo que nos aconteceu, num Estado de direito, onde vivemos, onde há um conjunto de regras que estão na Constituição, deve ter um procedimento. O procedimento segue para as instâncias superiores – mas normalmente as queixas [de violência policial] são barradas, não sei porquê.

Todos devemos respeitar uma autoridade. A autoridade é desenhada por homens e tem falhas. Não sei qual é o juramento que os polícias fazem, mas perante as coisas que temos vivido fico com dúvidas que seja algo que vise proteger todos os cidadãos de forma igual.

Na altura, aquilo foi um ponto de viragem na forma como olhava a autoridade em Portugal. Vi claramente que nós, aqui [na Cova da Moura], estamos isolados, não por culpa nossa mas porque existem forças que querem fazer com que as pessoas daqui sejam visadas.

Mesmo sabendo que a presunção de inocência nos é retirada, à partida não deixo de acreditar nas chefias: há agentes que podem ter sido mal informados e ter uma ideia mal formada acerca do bairro. O problema é que o simples acto de diálogo é visto como sacrilégio, e isso quando não somos sequer vistos como pessoas. A partir do momento que nos é retirada a humanidade é difícil acreditar que a pessoa [os polícias] me trata como ser humano. 

A possibilidade de fazer justiça será uma longa batalha. Tentarão usar todos os meios [para nos atacar]. A prática da política do medo já é usada há muito tempo. 

Não estamos a fazer luta, nem resistência contra a polícia porque sabemos que também precisamos dela: também sou um cidadão. Fazemos apenas resistência à opressão e repressão sobre nós.  

Tenho as minhas reservas sobre se o julgamento irá até ao fim. Não é algo que vai terminar em dois, três anos. As pessoas vão-se defender. Ainda vamos ter que nos defender. Foram precisos muitos anos para algo como isto [a acusação a 18 agentes] acontecer. Mexe com muita coisa, com a estrutura. Depois de tantas outras acusações noutros casos, e de tantas provas óbvias resultarem em não condenações… 

Quando vejo um carro da polícia tenho que pensar: será que vou por este caminho? Quando chego aqui tenho um alvo [no corpo].”

Flávio Almada

“Nós não somos corajosos, nem heróis. Fomos forçados a falar. O que fizemos foi exigir o respeito, a dignidade: tínhamos essa obrigação moral para com a sociedade. Não podem pensar que quando estamos a falar deste caso estamos contra a sociedade portuguesa. Estamos contra o racismo institucional que existe na sociedade portuguesa.

Não sou muito de entusiasmos. Eu já vi muito teatro. Segui de perto o caso do Elson Sanches (jovem de 14 anos, conhecido como Kuku) que foi executado pela polícia em 2009 e não deu em nada (a juíza absolveu o polícia apesar de ter ficado provado que ele deu o tiro na cabeça). No início do julgamento pareceu até que ia acontecer alguma coisa. Mas no final o polícia foi absolvido. E o miúdo, a família e a comunidade negra toda foram julgados.

A acusação do Ministério Público tem a ver com a conjuntura política actual. E há responsabilidades: de quem fez e de quem não fez. Isto [que nos aconteceu] não é nada de novo. Nos anos 1990, nas Fontainhas, eram os militares que iam lá dar porrada na malta. O que é que se fez? Nada. Houve a invenção de um arrastão [em 2005]. O que é que se fez? Nada. Houve recomendações das Nações Unidas [ao estado português sobre violência policial, em 2012]. O que é que se fez? Nada. A Amnistia Internacional falou, o que é que se fez? Nada.

O Alto Comissariado para as Migrações (ACM) estava onde [quando fomos detidos]? Onde estavam os partidos? Todos? Não tentem tirar o saldo político agora porque depois do debate parlamentar as nossas vidas continuam. A nossa vida não pode ser um momento em que se tira um saldo político e durante dois anos não se faz nada. O ACM reagiu após 72 horas. O que é que os partidos que atribuem o monopólio do racismo à direita andam a fazer? O problema é que o racismo está tão entranhado na sociedade que ninguém quer arriscar a sua pele pelo negro. E muitas vezes nem sequer querem deixar o negro falar por ele próprio.

Na Cova da Moura e noutros bairros o negro não é visto como um ser humano. São práticas institucionais e individuais. O negro não é abarcado pelo suposto Estado de direito. Há uma linha que divide o que é zona de “ser” e de “não ser”.

A zona do “ser” é onde há direitos, onde os sindicatos podem negociar, discutir, há diálogo e proximidade para conversação – e em alguns casos até há consenso. Na zona do “não-ser”, que é onde nós estamos, não há essa possibilidade. A tentativa de um jovem negro questionar a autoridade ou citar as leis é vista como desacato.

Num corpo destituído de humanidade alguém que tem poder pode fazer o que quiser. Como é que se organiza o território onde as pessoas vivem? A questão do negro é colocada como um problema de segurança, de polícia, de saúde social. Estou a falar da sociedade portuguesa. Reparem na exploração laboral. É a própria sociedade que tem essa consciência porque, quando existem brancos que estão a ser explorados, diz-se: “estou a trabalhar que nem um preto”?

Porque é que o patrulhamento nestas áreas é musculado? Porque é que isto acontece? Será que superámos a ideologia colonial? Durante séculos o negro foi transformado em mercadoria e em homem-ferramenta. Foi uma prática de todas as instituições, consolidada pelo discurso pseudocientífico de todas as áreas das ciências sociais e biológicas. Tivemos mais tarde o Código do Indigenato, o trabalho forçado nos territórios colonizados até 1974. E, de repente, fizemos uma revolução e dizemos que somos uma sociedade pós-racial? Estamos a assistir ao resquício do colonialismo, às suas continuidades: o fim oficial do colonialismo não significa o seu fim. O Estado português é um estado racial, há uma hierarquia. Isto não vem de agora, é antigo.

O despacho até pode ser uma coisa positiva, mas não chega. É muito pouco. E não devemos sentir como caridade: é o dever deles fazer justiça, analisar os factos, investigar e chegar a uma conclusão. Não se pode olhar para este caso como sendo isolado. Toda a sociedade deve perguntar: vai reconhecer e vai resolver este problema? Porque isto não é um problema da Cova da Moura, isto é um problema de Portugal."