Nem só de centros históricos e classes médias se faz o problema da habitação
É fundamental que uma Secretaria de Estado da Habitação não se foque, de forma exclusiva, numa classe social específica ou num território determinado.
A criação da Secretaria de Estado da Habitação é uma óptima notícia, desde logo porque dá um sinal de valorização política de uma área central na vida das pessoas. Uma área que tem vindo a ser objecto de uma mercantilização crescente, deixando os “consumidores” à mercê de lógicas sobre as quais não têm qualquer domínio. Mas o timing e o argumento para a sua criação, aproveitando uma mini-remodelação que não põe em causa a continuidade governamental, podem ser mal interpretados e eventualmente geradores de uma medida de política pública reativa e circunstancial.
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A criação da Secretaria de Estado da Habitação é uma óptima notícia, desde logo porque dá um sinal de valorização política de uma área central na vida das pessoas. Uma área que tem vindo a ser objecto de uma mercantilização crescente, deixando os “consumidores” à mercê de lógicas sobre as quais não têm qualquer domínio. Mas o timing e o argumento para a sua criação, aproveitando uma mini-remodelação que não põe em causa a continuidade governamental, podem ser mal interpretados e eventualmente geradores de uma medida de política pública reativa e circunstancial.
Criar uma Secretaria de Estado da Habitação a dois meses das autárquicas “dirigida agora às classes médias e em especial às novas gerações” pode ser entendido como uma reação exclusiva a um problema específico que afecta as duas maiores cidades do país, Lisboa e Porto.
É verdade que um dos grandes problemas com que hoje nos defrontamos é a dificuldade de acesso à habitação (affordability) como resultado de três fenómenos que se alimentam mutuamente: a transformação da habitação num produto financeiro negociado à escala global, a crescente internacionalização do investimento imobiliário ao nível local e a massificação do turismo urbano. Na prática, esta situação traduz-se num aumento exponencial dos preços da habitação que afecta inicialmente e de forma mais visível os centros históricos. Um fenómeno que vai produzindo ondas de choque pela cidade fora e territórios contíguos numa lógica de disseminação sobre a qual ainda nos falta muito conhecimento empírico sistematizado.
Mas, apesar das variações locais, este é um problema global que afecta essencialmente as maiores cidades, em especial na Europa, América do Norte e Austrália. Hoje, muitos dos governos das cidades afectadas por este problema já o incorporaram na sua agenda. Nalguns casos com políticas mais direcionadas para o turismo, de que é exemplo o Plan Especial Urbanístico de Alojamientos Turísticos de Barcelona (PEUAT), e noutros mais atentos ao investimento imobiliário estrangeiro. É o caso de Vancouver ou Londres, onde Sadiq Khan tem já em mãos os resultados de um rigoroso estudo de caracterização da propriedade habitacional estrangeira.
Repetindo, este é um problema das grandes cidades e, no caso português, de Lisboa e do Porto. Mais, sendo um (grande) problema destas cidades, não é o seu único problema habitacional. É nestas duas cidades que se concentra uma parte significativa da habitação social do país que continua a merecer grande atenção pública. E é também para elas, ou para as suas periferias, que continuam a imigrar as pessoas com mais dificuldades económicas e que são hoje um dos segmentos com maior precariedade habitacional.
Não sendo o único problema habitacional destas cidades, e menos ainda o de Portugal, é com certeza o mais mediático. É-o, porque afecta de forma relativamente inédita as classes médias, e não apenas os jovens. As classes com maior capacidade reivindicativa, as que são vistas como a força motriz dos destinos eleitorais de um país e, não menos importante, as que alicerçam as atividades urbanas que conferem a atratividade das cidades dos nossos dias.
A elevada mediatização e atualidade deste problema, assim como o reconhecimento da sua complexidade, importância política e social, não podem fazer esquecer a permanência de outros problemas de habitação, mais ou menos recentes. Menos ainda deverão esses argumentos conduzir à tentação de apagar do mapa a esmagadora maioria dos territórios de Portugal e toda a sua especificidade habitacional — do “suburbano” ao rural, passando pelo “periurbano”, do interior ao litoral.
Alguns desses problemas são anteriores à crise. É o caso da gestão do parque habitacional público herdado dos programas de realojamento do século passado ou de situações de grande insalubridade típicas de uma sociedade pré-moderna. Outros permanecem como manifestações irresolvidas da crise, da equidade negativa e incumprimento bancário aos “empreendimentos-fantasma”. Outros ainda são específicos dos nossos dias ou pura e simplesmente reflexo do correr do tempo, dos bairros em fim de “ciclo de vida” à degradação das habitações em meio rural agravada pela aceleração da desertificação.
Não se pode esperar que a administração central resolva todos os problemas de habitação. Seria ingénuo pedi-lo e demagógico prometê-lo. Mas é fundamental que uma Secretaria de Estado da Habitação não se foque, de forma exclusiva, numa classe social específica ou num território determinado, correndo o risco de beneficiar uns em detrimento de outros. Neste caso as cidades de Lisboa e do Porto, cujas receitas, não apenas do turismo, mas sobretudo do imobiliário como o IMT (Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis), são recursos essenciais que poderiam ser utilizados numa perspectiva de redistribuição equitativa da relação custo/benefício das mudanças que aí e só aí ocorrem.
A autora escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico