"Uma esquadra inteira acusada de racismo dá a mensagem de que algo tem falhado"
Advogada dos seis jovens que terão sido agredidos elogia a investigação "minuciosa" feita pelo Ministério Público. E as vítimas, "que tiveram a força, resistência e coragem de ficar até ao fim, de manter as acusações até ao fim".
Lúcia Gomes é advogada dos seis jovens da Cova da Moura que o Ministério Público (MP) considera que foram vítimas em 2015 de vários crimes perpetrados por 18 agentes da esquadra de Alfragide. “De 2015 até agora a única coisa que funcionou foi esta investigação” do MP, afirma. “Falhou o IGAI, a PSP e todas as entidades que dizem que acompanharam o caso.”
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Lúcia Gomes é advogada dos seis jovens da Cova da Moura que o Ministério Público (MP) considera que foram vítimas em 2015 de vários crimes perpetrados por 18 agentes da esquadra de Alfragide. “De 2015 até agora a única coisa que funcionou foi esta investigação” do MP, afirma. “Falhou o IGAI, a PSP e todas as entidades que dizem que acompanharam o caso.”
Segundo a acusação, a que o PÚBLICO teve acesso, os 18 agentes estão indiciados pela prática dos crimes de denúncia caluniosa, injúria agravada, ofensa à integridade física qualificada, falsidade de testemunho, tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos, falsificação de documento agravado e sequestro agravado. Os agentes, acrescenta o despacho, agiram “pelo sentimento de ódio racial, de forma desumana e cruel pelo prazer de causarem sofrimento”.
Para Lúcia Gomes, esta acusação “assume a existência de racismo nas instituições policiais". E mostra “como foi fabricada uma acusação, e ao mais alto nível, para criar a ideia de que existiu uma invasão à esquadra” a justificar a actuação dos polícias.
Como recebeu o despacho de acusação do Ministério Público?
Todo o processo de investigação decorreu de forma profissional e minuciosa. Pelo tempo que levou, já estava à espera que viesse alguma acusação. Todo o trabalho de investigação foi notável. Mas assumir, de forma tão óbvia, e numa esquadra inteira, aquilo que aconteceu e a motivação, nomeadamente a discriminação racial, é muito importante.
[A acusação] assume a existência de racismo nas instituições policiais, contradiz todas as versões oficiais que foram apresentadas à data, nomeadamente da direcção nacional da PSP e da própria Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI). E descreve minuciosamente como foi fabricada uma acusação, e ao mais alto nível, para criar a ideia de que existiu uma invasão à esquadra. [Isto quando se sabe que] os factos, porque são emitidos por uma autoridade judiciária, têm um valor diferente — quem lê os autos produzidos pelos agentes, tendencialmente acreditaria neles. Mas reconhecer que a versão das vítimas era correcta e fazer um contraditório, completamente desconstruído por todas as pessoas ouvidas, é notável. Mais notável é o facto de reconhecer expressamente que a motivação destes crimes foi racial.
Este despacho vai fazer história, mesmo sem o julgamento?
O despacho é muito importante, mas tem que haver cautela porque até ao julgamento, e durante o próprio julgamento, pode existir a perpetuação da forma como foi dada a notícia de que os jovens invadiram a esquadra. Calculo que no próprio julgamento se insistirá no preconceito de que os jovens, por serem da Cova da Moura, eram criminosos. Depois, em sede de audiência, teremos que ver. Isto é um passo muito importante, mas é intermédio, o julgamento é que terá uma decisão.
Assumir que uma esquadra inteira praticou actos de racismo contra jovens...
…é importantíssimo, inédito, e dá uma mensagem de que algo tem falhado. Por um lado, dá a mensagem de que as pessoas da Cova da Moura são gente e têm direitos e por outro de que, às vezes, a justiça funciona. Desde 2015 até agora a única coisa que funcionou foi esta investigação que culminou nesta acusação: falhou o IGAI, a PSP e todas as entidades que dizem que acompanharam o caso. Não houve intervenção pedagógica, os polícias continuaram a exercer funções na mesma esquadra e a patrulhar a Cova da Moura. O processo do IGAI foi arquivado e só teve consequência em dois agentes. Isto tem que levar as entidades a ponderar muito bem a postura neste tipo de situações. Houve denúncias desde o primeiro dia.
Quem investiga casos semelhantes tem que tomar este despacho em conta?
Quanto mais não seja este despacho já serviu para alertar e voltar a trazer este tema, muito importante, e recorrente. Serviu para alertar as instituições a olharem para dentro e tentarem, por todos os meios, evitar este tipo de comportamentos. O mais importante é evitar estes comportamentos, não investigá-los depois. Estamos a falar de 18 agentes: em dois anos nenhuma medida foi tomada.
O que se deveria fazer?
Suspendê-los era importante. Todos têm direito a defesa e até ao julgamento são presumivelmente inocentes. Mas com tantos factos, tanta prova produzida, tanta investigação feita a direcção da PSP tem que tirar ilações. As vítimas tiveram a força, resistência e coragem de ficar até ao fim, de manter as acusações até ao fim. Muita gente não avança por medo. Por vezes nem tem as condições, não sabem a quem se dirigir nem o que fazer.