A arquitectura também se faz a fotografar
Nova exposição do Centro Cultural de Belém mostra o trabalho de Fernando Guerra, um dos mais reconhecidos fotógrafos de arquitectura da actualidade. Um arquitecto que desistiu do estirador mas não da arquitectura. Até 15 de Outubro.
É uma mesa com 60 metros de comprimento que cria uma espécie de eixo central, dividido ao meio. De um lado centenas de fotografias de pequeno formato que foram escolhidas entre as 1200 reportagens que Fernando Guerra fez nos últimos 18 anos; do outro materiais que estão ligados ao seu percurso, da primeira câmara que comprou, quando era ainda adolescente (uma Canon T90), ao modernos drones que hoje usa quando quer registar um território, passando por livros e revistas com capas que assinou, rolos de filme e slides a lembrar que a fotografia já se fez de outra maneira, retratos de Álvaro Siza Vieira e até um iPad onde o arquitecto desenhou apenas um Adão e uma Eva porque a maçã já lá estava.
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É uma mesa com 60 metros de comprimento que cria uma espécie de eixo central, dividido ao meio. De um lado centenas de fotografias de pequeno formato que foram escolhidas entre as 1200 reportagens que Fernando Guerra fez nos últimos 18 anos; do outro materiais que estão ligados ao seu percurso, da primeira câmara que comprou, quando era ainda adolescente (uma Canon T90), ao modernos drones que hoje usa quando quer registar um território, passando por livros e revistas com capas que assinou, rolos de filme e slides a lembrar que a fotografia já se fez de outra maneira, retratos de Álvaro Siza Vieira e até um iPad onde o arquitecto desenhou apenas um Adão e uma Eva porque a maçã já lá estava.
Fernando Guerra, 46 anos, é arquitecto mas foi com a fotografia que decidiu trabalhar. A exposição que abre esta terça-feira na Garagem Sul do Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa, percorre uma carreira de quase 20 anos que fez dele o mais internacional dos fotógrafos de arquitectura portugueses e lhe permitiu construir um importante arquivo.
Foi precisamente com base nesse arquivo ligado ao estúdio FG+SG, que fundou com o irmão, Sérgio, e que disponibiliza online através da plataforma Últimas Reportagens desde 2005, que se construiu Fernando Guerra: Raio X de uma prática fotográfica, exposição comissariada pelo arquitecto e crítico Luís Santiago Baptista e a que o fotógrafo se refere como uma “retrospectiva feita a meio” – a meio da carreira, a meio da vida.
“O trabalho do Fernando Guerra e o arquivo que ele reuniu são incontornáveis para a cultura arquitectónica contemporânea, portuguesa e não só”, diz André Tavares, programador da Garagem Sul, espaço que o CCB consagra à arquitectura desde 2012, explicando que o estúdio e a plataforma digital que lhe pertence funcionam quase como uma “agência de fotografia clássica”. A singularidade da fotografia de Guerra, defende, reside precisamente na palavra que ele não se cansa de repetir sempre que fala do que faz – “reportagem”.
“O Fernando Guerra consegue, e com grande eficiência, chegar a um espaço, reconhecer uma obra arquitectónica e transmiti-la a um público muito amplo em vários suportes, cruzando múltiplos elementos de difusão com a expressão única de um lugar”, diz Tavares, também crítico de arquitectura.
Um bote para Álvaro Siza
Esses suportes variados estão presentes na exposição nos vídeos em que cinco críticos convidados reflectem sobre o trabalho de Fernando Guerra criando pequenas ficções ou optando por um registo mais documental; nos dípticos escolhidos por 50 dos seus clientes; nas nove imagens impressas que seleccionou entre as mais de 180 mil que fez nos últimos 18 anos e que comenta em áudio; nas fotografias projectadas em grandes telas que dão destaque a uma série de projectos divididos em cinco grandes núcleos – um mostra o trabalho de Siza Vieira, que Guerra tem acompanhado intensamente; outro revela o que está no interior, por regra mais inacessível; outro ainda tem o território por protagonista; um quarto demora-se nos detalhes, o último é feito de imagens registadas ao fim do dia, com a noite a chegar.
Pelo meio há os Porsches que se habituou a restaurar e a coleccionar desde que tinha pouco mais de 20 anos e que representam um “ideal de beleza e de perfeição”, diz o fotógrafo, comparando o seu trabalho ao de um músico de jazz que tem uma partitura de referência mas está sempre disposto a improvisar à volta dela, obedecendo a algumas regras básicas. “Quando se fotografa arquitectura as verticais têm de ser verticais, não se pode distorcer o edifício”, explica, acrescentando em seguida que uma obra deve ser mostrada como é, sem artifícios, mas que isso não significa que tenha de abdicar de encenar situações recorrendo a objectos e figurantes, como aconteceu quando pediu que lhe trouxessem um bote e uma capa de chuva para fotografar um edifício de escritórios desenhado por Siza e Carlos Castanheira para uma fábrica de vidros no interior da China.
“Eles acharam que eu tinha pedido o bote para me meter nele e fotografar a meio do lago e ficaram muito surpreendidos quando pedi a um dos funcionários que se deixasse fotografar. Nota-se bem que é um elemento falso, mas é divertido. O bom do meu trabalho é que não tenho obrigação de fechar uma história ou de me colar à realidade. Não sou jornalista. Quem vê as fotografias que conte a história à sua maneira e a complete, se achar que é preciso.”
Fernando Guerra não recorre ao Photoshop para apagar fichas numa parede ou parabólicas num telhado para que tudo fique mais bonito, exemplifica, mas assegura que, na fotografia, o seu único limite é ele mesmo.
O que conta é a arquitectura
Quando está a trabalhar, Guerra procura que a imagem não transmita qualquer juízo de valor sobre o projecto. Tem opiniões muito claras sobre cada um mas fotografa com a mesma seriedade um edifício de Álvaro Siza Vieira, que admira profundamente, ou um espaço comercial sem grandes marcas distintivas.
Entre os seus clientes estão muitos arquitectos e ateliers com percursos sólidos e já longos – portugueses como Siza, Castanheira, Manuel Graça Dias, Manuel Mateus, Gonçalo Byrne ou João Luís Carrilho da Graça, estrangeiros como Márcio Kogan, Isay Weinfeld e Zaha Hadid –, mas também nomes que assinaram uma ou duas moradias (a casa particular é a encomenda dominante).
“Quando estou a fotografar não sou um artista à solta numa obra. O trabalho não é sobre mim, é sobre a arquitectura, sobre o dono da casa. Tenho um cliente, um caderno de encargos. O glamour de fotografar casas-de-banho pode ser zero, mas se o cliente pediu eu fotografo e da melhor maneira que sei. Não interessa se gosto do que estou a fotografar.”
Guerra sabe que a “imparcialidade total” é uma fantasia, mas trabalha para ela com “muita paciência”, esperando pelo ângulo certo, o que não descobriu logo à chegada e o obrigou a baixar-se para olhar para um recanto ou uma janela de outra maneira. Continua a confiar muito na intuição e na sua formação como arquitecto para ler um lugar, mas já dificilmente se surpreende com a arquitectura. Quando isso acontece, diz, é natural que parta de um pormenor ou de uma solução muito simples que o arquitecto encontrou para resolver um problema.
“Não me imagino a regressar ao estirador para desenhar, como fiz no passado, mas sinto-me a participar da construção quando trabalho porque, muitas vezes, a fotografia que fazemos fica colada à obra, passa a ser a imagem que as pessoas têm do edifício que podem nunca chegar a visitar.”
Quem percorre a grande mesa da exposição do CCB apercebe-se rapidamente do que Fernando Guerra quer dizer quando garante que cada um pode criar a história que quiser a partir das suas fotografias. Se o visitante entrar no jogo, a Adega Mayor de Álvaro Siza pode transformar-se num templo egípcio, os miúdos à beira das piscinas de Paulo David podem viajar no tempo, o aeroporto internacional de São Vicente, Cabo Verde, pode acabar transferido para a América de Sam Shepard, e pode até ser que um edifício de Zaha Hadid obrigue a rever O Herói do Ano 2000 de Woody Allen.