Tribunal manda suspender hotel que nasceria colado à praia de Monte Gordo
A câmara vendeu o lote, por 3,6 milhões de euros, mas a venda pode vir a ser declarada nula. A parcela de terreno, entende o Ministério do Ambiente, pertence ao Domínio Privado do Estado.
A câmara de Vila Real de Santo António vendeu por 3,6 milhões de euros um lote para construir um hotel em Monte Gordo mas a transacção corre o risco de ser declarada nula por a autarquia não ser na realidade dona do terreno. Para já, o Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Loulé ordenou a suspensão do processo de licenciamento da construção da unidade hoteleira. Este é mais um caso da disputa entre a administração central e o poder local pelo controlo e gestão das zonas marítimas, com as autarquias do Algarve a revindicar a alteração do Plano de Ordenamento da Orla Costeira (POOC).
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A câmara de Vila Real de Santo António vendeu por 3,6 milhões de euros um lote para construir um hotel em Monte Gordo mas a transacção corre o risco de ser declarada nula por a autarquia não ser na realidade dona do terreno. Para já, o Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Loulé ordenou a suspensão do processo de licenciamento da construção da unidade hoteleira. Este é mais um caso da disputa entre a administração central e o poder local pelo controlo e gestão das zonas marítimas, com as autarquias do Algarve a revindicar a alteração do Plano de Ordenamento da Orla Costeira (POOC).
A frente marítima de Monte Gordo — toda a zona que vai do núcleo piscatório até ao hotel Vasco da Gama, num total de sete hectares — pertencia ao Domínio Público Marítimo mas foi apropriada pela autarquia em 2010. Manuel Gouveia Pereira, adjunto da então ministra do Ambiente, Dulce Pássaro, considerou, na altura, que a frente marítima pertencia ao Domínio Privado do Estado mas a advertência não teve resultado prático. Os actos praticados pelo município, escreveu, “configuram actos nulos, nos termos da lei, podendo a referida nulidade ser invocada a todo o tempo”. A ex-ministra do Ambiente e do Ordenamento do Território (MAOT) colocou um “visto com preocupação” no despacho, solicitando um parecer jurídico “acerca da forma como o Estado deve actuar de modo a acautelar os seus interesses”. De seguida, o Ministério do Ambiente informou a Direcção-Geral do Tesouro e Finanças, em 4/5/2011, sobre a alegada perda de património. Mas nada foi feito.
Agora, um relatório elaborado pela Inspecção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento (IGAMOT) vem sublinhar um outro aspecto: a construção da nova unidade viola os regulamentos do POOC Vilamoura — Vila Real de Stº António. “Este plano especial [POOC] não classifica como ‘Espaço Turístico’ a área para a qual é proposta a unidade hoteleira em causa”. O documento foi submetido para apreciação do ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes, no passado dia 6 Junho.
O Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Loulé, por outro lado, pronunciou-se na semana passada a propósito do licenciamento do hotel, condenando a câmara a abster-se de continuar com o processo. A decisão foi tomada na sequência de uma providência cautelar interposta, no passado mês de Fevereiro, pelos proprietários do edifício “Rosa dos Ventos”, localizado no outro lado da Avenida Infante D. Henrique. Os mais de 60 condóminos alegaram que a construção desta unidade hoteleira violava os regulamentos do Plano do POOC. “Julgo indevida a execução do acto, suspendendo”, diz a sentença, declarando “ineficazes os actos administrativos praticados pelo município de Vila Real de Stº António”.
Venda do areal a privados
As dúvidas sobre a quem pertence a frente marítima de Monte Gordo começaram em 2010 quando o município de Vila Real de Stº António passou do Domínio Público Marítimo para o Domínio Privado Municipal uma faixa marítima com 70.070m2. A justificação: um plano de requalificação e remodelação da zona balnear com a construção de um passadiço pedonal sobrelevado com dois quilómetros de extensão (orçado em um milhão de euros financiado a 85% com fundos comunitários), acompanhado de uma proposta de construção de oito novos hotéis, representando um investimento de 200 milhões de euros. O que se passa no concelho de Vila Real de Stº António em relação às apropriações das zonas marítimas, através da figura de usucapião, é uma situação comum a outras zonas do Algarve. Em Olhão, por exemplo, a câmara também alienou lotes para construir em áreas que pertenceram ao Domínio Público Marítimo. Mas, quando o mar recua, a quem pertence o areal que cresceu? A esta pergunta, a Agência Portuguesa do Ambiente (APA), tomando como referência o caso de Monte Gordo, diz: “A parcela entra automaticamente no domínio privado do estado” — o parecer emitido pela APA é sustentado pelo artigo 6º do Decreto-Lei nº 468/71, de 5 de Novembro e artigo 13º da Lei nº54/2015, de 15 de Novembro, com alterações introduzidas pela rectificação nº 4/2006, de 11 de Janeiro.
Os conflitos de interesses estão a surgir um pouco por toda a orla portuguesa numa altura que se procede às revisões dos POOC, que deixarão de ter força regulamentar, ficando apenas como indicadores de directivas programáticas. Neste contexto, e porque no Algarve a força do imobiliário é mais musculada, o problema ganha outra dimensão. A Comunidade Intermunicipal do Algarve — Amal apresentou uma proposta ao Governo para que sejam as câmaras a gerir e a explorar as zonas marítimas, argumentando que são as autarquias que suportam as despesas para manter as praias bem cuidadas e zelam pelo interesse público.
Ainda neste domínio, a ministra do Mar, Ana Paula Vitorino, criou um grupo de trabalho, ainda sem resultados, para estudar a passagem dos portos do Algarve para a tutela das autarquias.
Ambiente aprovou, agora vai rever
A 15 metros de distância da praia de Monte Gordo, a câmara vendeu um lote de 6.376 metros quadrados de terreno não urbanizável por 3,6 milhões de euros. Quem comprou, através de concurso público, foi a empresa Hoti-Star — Portugal Hotéis, SA, com o objectivo de erguer um hotel que poderia chegar aos 8 mil metros de construção. No espaço encontram-se, actualmente, dois courts de ténis municipais, um polidesportivo descoberto e um bar da associação de mariscadores.
A proposta urbanística, cujo processo de licenciamento foi mandado suspender pelo TAF de Loulé, mereceu o parecer favorável da Agência Portuguesa do Ambiente, apesar de considerar que a proposta apresentada não coincidia com o “Espaço Turístico” previsto no Plano de Ordenamento da Orla Costeira (POOC) — tal como a IGAMAOT viria recentemente a confirmar. No entanto, a APA admitia a intervenção como se fosse uma espécie de mal menor em relação ao que estava previsto. Na Unidade Operativa de Planeamento e Gestão (UOPG) IX do POOC Vilamoura — Vila Real de Stº António, diz o parecer técnico, já se previa a construção de um hotel, a poente, que iria causar mais danos do ponto de vista ambiental — a solução apresentada, considerou a APA, afectava áreas artificializadas ao invés de áreas naturais. “Não coloca em causa os objectivos do ordenamento numa perspectiva global, uma vez que dá resposta à função turística pretendida para a sua área de intervenção”, sublinha.
Os vereadores do PS, inconformados com a situação, antes da assinatura da escritura de venda do lote para a construção do hotel — a 14 de Dezembro de 2016 — denunciaram à IGAMAOT a eventual violação do POOC. Do relatório elaborado por esta entidade, concluiu-se que as suspeitas têm fundamento. “Não existe conformidade entre aquela solução e o POOC dado que, para todos os efeitos, este plano especial não classifica como ‘Espaço Turístico’ a área para a qual é proposta a unidade hoteleira em causa”. Sobre o caso das parcelas que transitaram do Domínio Público Marítimo para o Domínio Privado do Estado, a APA admitiu em Fevereiro — quando questionada pelo ministério do Ambiente — reanalisar o processo: “Não tendo recebido orientações por parte da Direcção Geral do Tesouro e Finanças e perante as actuais denúncias, avalia-se agora novamente a situação”.