William Basinski numa missa para David Bowie
O americano William Basinski, que fixou sonoramente de forma admirável o 11 de Setembro, vem apresentar o novo álbum, A Shadow In Time, meditação musical sobre a perda de amigos e heróis. Será daqui a uma semana na catedral de Viseu, a convite dos Jardins Efémeros.
Até ao funesto 11 de Setembro de 2001 a obra do compositor e músico americano William Basinski parecia confinada ao obscurantismo. Mas nessa ocasião, a partir de fitas antigas e fragmentos sonoros que se encontravam em estado de decomposição, concebeu a obra The Disintegration Loops, constituída por quatro volumes que fixavam em música essa ocasião fatídica, num som repetitivo, abatido, elegíaco, em desintegração. A partir daí tudo mudou na sua vida: tornava-se no criador de alguma da música mais fascinante e singular do nosso tempo.
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Até ao funesto 11 de Setembro de 2001 a obra do compositor e músico americano William Basinski parecia confinada ao obscurantismo. Mas nessa ocasião, a partir de fitas antigas e fragmentos sonoros que se encontravam em estado de decomposição, concebeu a obra The Disintegration Loops, constituída por quatro volumes que fixavam em música essa ocasião fatídica, num som repetitivo, abatido, elegíaco, em desintegração. A partir daí tudo mudou na sua vida: tornava-se no criador de alguma da música mais fascinante e singular do nosso tempo.
“É incrível como as coisas podem mudar”, diz-nos Basinski, 59 anos, via Skype, quando mencionamos esse momento de viragem. “Por mais que tentemos antecipar o que aí vem, nunca sabemos. Às vezes as coisas mudam rapidamente para melhor e foi isso que aconteceu”, refere, apontando três momentos decisivos no seu percurso. “Ter conhecido o meu companheiro James Elaine há mais de 30 anos: é um grande artista, curador e coleccionador, e um ser humano espantoso que nunca parou de me incentivar. Foi também importante ter conhecido a meio dos anos 1990 Carsten Nicolai [mais conhecido como Alva Noto], que acreditou e me lançou na sua editora. E finalmente, sim, aquando do 11 de Setembro, numa altura em que sentia que ninguém compreendia o que andava a fazer, o mundo parece ter acordado e a minha carreira foi relançada”, ri-se ele. “Agora posso pagar as contas e isso é magnífico.”
Na actualidade, é uma das figuras mais respeitadas da música ambiental, minimal, exploratória, abstracta, ou o que se lhe queira chamar, sendo uma influência no renovado interesse em torno de sonoridades atmosféricas. “Isso também é incrível, como num curto espaço de tempo, surgiu uma série de gente, como Grouper ou Lawrence English, a fazer música tão especial. E ao mesmo tempo o facto de todas essas pessoas mais novas falarem do meu trabalho é lisonjeador e responsabiliza-me.”
O seu último álbum, A Shadow In Time (2017), é constituído por duas longas peças. Ambas exploram o tema da morte e há, como é recorrente no seu trabalho, a sensação do tempo a passar, do desvanecimento, da decadência, mas também do sublime e da transcendência. A peça For David Robert Jones é dedicada a David Bowie e A shadow in time ao artista chinês Deng Tai.
São essas peças que irá apresentar na Catedral de Viseu, dia 15, no contexto de mais uma edição do evento multidisciplinar Jardins Efémeros, que começa hoje e que irá ter muitos outros pontos de interesse musicais como os concertos, esta sexta, de Sarah Davachi, Bruno Pernadas, SOS Gunver Ryberg ou Die Von Brau (em filme-concerto), e, sábado, de Murcof + Vanessa Wagner, Strange ou Croatian Amor. No fim-de-semana seguinte, de 12 a 15, haverá espaço para Evan Parker, Fennesz & Arve Henriksen, Peter Gabriel Duo, Stine Janvin, DJ Firmeza, Pop Dell Arte + Tiago Pereira com o Grupo de Percussão de Valhelhas ou Superpitcher.
Apresentar a sua música em espaços não convencionais é algo a que está habituado e as igrejas não são excepção. “Adoro tocar em igrejas”, exclama, quando lhe recordamos que em Viseu irá apresentar-se numa catedral. “A reverberação é fantástica! As igrejas são como instrumentos gigantes que é possível manipular! Por outro lado este espectáculo é uma espécie de missa para heróis e amigos mortos, intenso, litúrgico, como se fosse um longo funeral de Nova Orleães, e um espaço assim, para lá das conotações simbólicas, parece-me o ideal. Dito isto, gosto de pensar na minha música como algo de longínquo, que nos ausenta de um espaço ou de um tempo concreto, transportando-nos para o eterno. Só a música e Deus conseguem isso”, afirma por entre risos.
Uma das peças sonoras do disco é dedicada a um amigo, o artista chinês Deng Tai, outra a um herói, David Bowie. “O álbum A Shadow In Time surgiu como forma de recordar essas pessoas. Deng Tai era assistente de Jamie e costumava fazer performances na rua, durante a noite, da qual resultavam bonitas imagens em movimento, como a da capa do disco. Foi uma tragédia ter-se suicidado. E Bowie é um herói de sempre. Uma semana depois da sua morte, uns amigos que têm uma pequena galeria em Los Angeles convidaram-me para uma intervenção e comecei a procurar fragmentos de sons na minha colecção; às tantas descobri um som de saxofone que me transportou para Bowie. De repente tudo aquilo me fez lembrar Low, um dos meus álbuns preferidos dele, e aí fez-se clique.”
Na adolescência queria ser como ele. Em 1983, quando era saxofonista de uma banda rock, os Rockats, que fizeram a primeira parte de um concerto de David Bowie, chegou a entregar ao seu manager uma gravação e cruzaram-se nos bastidores. “Foi simpático, cumprimentou-me de forma calorosa e charmosa, mas foi apenas um encontro casuístico, nada mais. Aquilo que lhe devo, pela música e pela atitude perante a vida, isso sim é importante.”
Como um rio
Como em quase todas as suas obras, existe sempre um ponto de partida emocional. Apesar de a sua música ser abstracta, há um elemento concreto que a desencadeia. Invariavelmente compõe longas peças instrumentais que fluem como um rio, acumulando motivos sonoros que se podem tornar graves ou pesarosos, numa sobreposição de memórias. E depois existem os acidentes, os pequenos erros de percurso na criação, que acaba por assimilar. “Tento estar aberto a acontecimentos excepcionais que nos fazem tomar direcções não previstas”, afirma. “Há experimentação, mas também foi importante ter estudado música clássica, porque me estruturou. É como pintar, segue-se a linha, mas depois algum acidente acontece e tem de se seguir outra linha, e assim sucessivamente.”
O seu percurso nunca foi linear. No final dos anos 1970, em São Francisco, gravava os mais diversos sons concretos e depois trabalhava essas gravações que se viriam a tornar na sua biblioteca sonora, esculpindo os sons com minúcia, através de edição, corte e colagem, num processo que ele compara ao acto de pintar. “Ao longo dos anos fui estando perto dos mais diversos pintores e não creio que o que fazem seja diferente”, diz
Mais tarde haveria de se mudar para Williamsburg, Brooklyn, muito antes de essa zona se ter tornado no bairro mais badalado de Nova Iorque e um dos mais falados quando se fala de fenómenos de gentrificação. O apartamento de grandes dimensões, de nome Arcadia, onde residia acabou por transformar-se em local de passagem obrigatório para artistas e boémios e durante anos funcionou como figura aglutinadora da comunidade artística mais vanguardista de Nova Iorque. A foto da capa do álbum Grace, de Jeff Buckley, foi tirada na sua sala de estar e Anohni (ex-Antony) e Diamanda Galas actuaram também no espaço.
Depois de muitos anos nas margens, em 2002, quando editou o primeiro tomo em torno do 11 de Setembro, surgiu a aclamação, com a história por detrás desse trabalho a tornar-se mítica. A partir do seu terraço, em Brooklyn, colocou uma câmara a filmar as últimas horas desse dia, apontando-a para o fumo vindo de Manhattan. No dia seguinte, vendo o que filmara ao mesmo tempo que ouvia fitas antigas, em repetição, que se encontravam em avançado estado de decomposição e que havia passado o Verão de 2001 a tentar salvar, transformou-as numa elegia daquele dia.
O resultado final, que teve a primeira edição em 2002, é admirável. Notas mínimas e ruídos discretos de erosão do som, que se vão repetindo e sobrepondo, numa espécie de tranquilidade funerária, ou uma meditação solene e emocional sobre a perda. No fim de contas nada de muito diferente do que se ouve no recente disco, já composto numa fase em que os álbuns, as digressões ou as colaborações se sucedem com regularidade.
Uma das últimas e mais curiosas aconteceu com Jlin, uma das sensações do corrente ano no campo das músicas de inspiração urbana, com o álbum Black Origami. “Ela é de outro mundo”, exclama ele. “O seu álbum é refrescante e desafiante, sendo incrível a forma como trabalha os pequenos detalhes rítmicos. Conheci-a através da minha assistente, Preston Wendel, com quem vou lançar um álbum, e que domina todas essas novas músicas rítmicas. Fomos apresentados no Museu Broad de Los Angeles, no Verão, e depois mantivemos o contacto, tendo ela a iniciativa de me perguntar se queria colaborar num tema. E eu acedi, claro.”
Em 2008, William Basinski deixou Nova Iorque e foi para Los Angeles. Perguntamos-lhe a razão da mudança e fala da importância do silêncio. “Nova Iorque é ruidosa, em Los Angeles existe mais natureza, o sol e mais silêncio. Para me ouvir, e à minha música, preciso disso. Aqui alugámos uma casa num subúrbio muito calmo, com um pequeno jardim, com pássaros e algumas árvores. Gosto disso. Não saio muito, só nas digressões. Gosto de conhecer pessoas, há-as fantásticas por todo o lado, mas também é cansativo. Agora Brooklyn é apenas uma memória suspensa no tempo.” Quem sabe se um dia destes não se transformará em mais um álbum.