Um imenso lugar nenhum

Sobre Certain Women, de Kelly Reichardt.

Foto
Laura Dern em Certain Women DR

O texto seguinte foi produzido por um dos participantes do 2.º Workshop Crítica de Cinema realizado durante o 25.º Curtas Vila do Conde – Festival Internacional de Cinema. Este workshop é formado por um conjunto de masterclasses e debates com convidados internacionais e pela produção de textos críticos sobre os filmes exibidos durante o festival, que serão publicados, periodicamente, no site do PÚBLICO e no blogue do Curtas Vila do Conde.

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Certain Women (2016) não parece querer levar-nos a lado nenhum. Marca o regresso ao tom habitual da realizadora Kelly Reichardt, depois do ligeiro desvio em Night Moves (2013), e debruça-se sobre as questões de género e a América profunda. A actualidade dos seus temas é reforçada por um elenco em voga no universo do cinema e da televisão de autor, incluindo Michelle Williams (Manchester by the Sea), com quem já colaborara antes, Kristen Stewart (As Nuvens de Sils Maria, Personal Shopper) e ainda Laura Dern (Twin Peaks).

É um filme com bastantes qualidades: interpretações fortes, uma fotografia notável e o ritmo particular e desafiante de Reichardt. Talvez por isso possa ser visto como um antídoto para os tempos actuais, pois, apesar dos temas fracturantes, é na compaixão pelas suas personagens que Certain Women se destaca. O argumento é uma adaptação de contos de Maile Meloy, e conta três histórias abordando o intolerável vazio em que a rotina quotidiana nos deixa depois do acidente. Se o primeiro, um acidente de trabalho que deixa Fuller (Jared Harris) incapacitado, é mais literal do que os subsequentes, todos eles são uma interrupção que reformula a rotina de quem os experiencia. As personagens femininas vivem num mundo à parte dos estereótipos a que o cinema nos habituou, e a sua passividade é retratada com realismo franco e sensibilidade minuciosa. Nos detalhes do quotidiano, Reichardt diagnostica subtilmente a injustiça social de que as suas personagens são duplamente vítimas e cúmplices, num jogo de empatia que dilui o antagonismo da narrativa. Apesar de as questões de género e da América profunda serem geralmente contrastadas no espaço público, Certain Women sugere que estas pessoas estão realmente do mesmo lado de uma batalha sem confronto.

Outra característica de Reichardt que se mantém é a preocupação com a geografia. Os planos muito abertos, a convocar a imagética do território do western, são como um postal em que as personagens se perdem. A incomensurabilidade da paisagem do Montana sugere que o tema do filme será mesmo esta desadequação entre as personagens e o meio que as rodeia. Gina (Michelle Williams) está envolvida na complicada tarefa de adquirir um tipo de pedra específico para uma casa que se integre na paisagem. Esta oposição é sublinhada visualmente na pequena escala humana dentro dos planos de paisagem, e também na prevalência de momentos em que as personagens, no seu dia-a-dia, recorrem ao carro para atravessar estas grandes distâncias. A grandiosidade do Montana contrasta com a comunidade pequena em que as várias histórias se cruzam, trazendo-nos novamente ao poder da subtileza do comentário político de Reichardt.

Texto editado por Jorge Mourinha