Portugueses começaram a pescar bacalhau na Terra Nova depois de um engano

Se há quem tenha na sua história o bacalhau são os portugueses. Este peixe chegou a Portugal através de outros povos, mas a verdade é que também o pescámos num dos sítios mais cobiçados: a Terra Nova. Como é que tudo surgiu?

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Enric Vives-Rubio

No final do século XV, na tentativa de encontrar o caminho marítimo para a Índia por oeste, os portugueses acabaram por se deparar com a Terra Nova, que hoje pertence à província Terra Nova e Labrador, no Canadá. Este seria o ponto de partida para a pesca do bacalhau dos portugueses no Atlântico Norte. Nada que até aqui não se soubesse ou que não constasse em livros de história. Mas na conferência Rainhas, Pescas e Cruzadas, que decorreu recentemente no Museu de Marinha, em Lisboa, o tema voltou a ter voz. O investigador Bjørn Poulsen, da Universidade de Aarhus (na Dinamarca), fez uma apresentação sobre a pesca medieval de peixe seco no Atlântico Norte e falou no começo da pesca do bacalhau em Portugal.

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No final do século XV, na tentativa de encontrar o caminho marítimo para a Índia por oeste, os portugueses acabaram por se deparar com a Terra Nova, que hoje pertence à província Terra Nova e Labrador, no Canadá. Este seria o ponto de partida para a pesca do bacalhau dos portugueses no Atlântico Norte. Nada que até aqui não se soubesse ou que não constasse em livros de história. Mas na conferência Rainhas, Pescas e Cruzadas, que decorreu recentemente no Museu de Marinha, em Lisboa, o tema voltou a ter voz. O investigador Bjørn Poulsen, da Universidade de Aarhus (na Dinamarca), fez uma apresentação sobre a pesca medieval de peixe seco no Atlântico Norte e falou no começo da pesca do bacalhau em Portugal.

Antes de seguirmos nas embarcações portuguesas no final do século XV em direcção à Terra Nova, é conveniente conhecer a pesca de bacalhau no Atlântico Norte na Idade Média. Afinal, foi este o período que antecedeu a descoberta da Terra Nova dos Bacalhaus, como consta em vários mapas e relatos. Bjørn Poulsen descreveu na conferência – no âmbito da exposição Vikings – Guerreiros do Mar no Museu de Marinha, que ainda pode ser visitada – duas “revoluções” da pesca na Idade Média. “A primeira apareceu por volta do ano 1000, e a segunda por volta de 1400 e em adiante”, referiu Bjørn Poulsen.

O historiador dinamarquês avisou logo que iria falar sobre peixe seco, que inclui o arenque e o bacalhau secos. Ou seja, o bacalhau que é apenas seco e não salgado seco (como estamos mais habituados), explica-nos por sua vez Álvaro Garrido, historiador na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (que não participou na conferência). Acrescenta ainda que nos séculos XVI e XVII se consumia muito bacalhau seco. “Era um bacalhau pobre e muito ressequido, tal como se ressequia o carapau na Nazaré.”

Naveguemos então pelas águas do Atlântico Norte. Por volta do ano 1000, o peixe seco chegava aos centros urbanos da Europa do Norte e vinha de águas muito longínquas. “A revolução da pesca que teve lugar no século XI, por volta de 1050, foi o tempo em que a pesca offshore se tinha tornado um projecto a longa distância”, contou Bjørn Poulsen. Para esta revolução, Poulsen apontou o trabalho do zoo-arqueólogo James Barrett (da Universidade de Cambridge, no Reino Unido) e de outros zoo-arqueólogos, que além da urbanização mencionam o Pequeno Óptimo Climático como causa dessas viagens mais distantes. Esse período de tempo mais quente teria originado o decréscimo da produtividade de peixe no Mar Báltico e no Mar do Norte.

Assim, o comércio de bacalhau seco em larga escala começou no século XI. E Bjørn Poulsen referiu que foram descobertos bacalhaus do oceano Árctico ou Atlântico do século XI na localidade viking de Hedeby (na actual Alemanha). Também do século XII se encontraram bacalhaus do Atlântico na cidade de Eslésvico (também agora na Alemanha).

“O bacalhau constitui um exemplo muito ilustrativo de um comércio de longa distância e largamente documentado que emergiu na Idade Viking”, disse. O comércio de longa distância começou na Noruega, na costa Sul do arquipélago de Lofoten (no círculo Polar Árctico), e foi-se depois estendendo para sul.

E como era a pesca? Usavam-se linhas e anzóis. Já o ar frio e seco permitia que o peixe secasse ao vento sem o uso de sal. “O processo simples tornava possível aos agricultores do litoral e pescadores irem pescar e obter lucro ao venderem peixe aos mercadores. Os homens de família concentravam-se na pesca, enquanto as mulheres cuidavam dos animais e das culturas”, descreveu.

O bacalhau era ainda transportado para um “sítio estratégico” na Noruega, a localidade de Bergen, que estava situada entre as zonas de pesca do Norte e os mercados europeus. Foi em Bergen que, em meados do século XIII, os mercadores ganharam o controlo da exportação de bacalhau. No século XIV já dominavam o mercado do Noroeste da Europa, na área do rio Reno e nas terras do Báltico.

Uma portuguesa na Dinamarca

O bacalhau seco era exportado para a maior parte da Europa. Nos séculos XIII e XIV chegou às maiores cidades do Báltico, de Inglaterra e Flandres (região Norte da actual Bélgica). “Londres era uma cidade em pleno crescimento e uma grande consumidora de bacalhau”, referiu o investigador. Chegou também aos mercados do Mediterrâneo. Consta num livro de cozinha do final do século XIV. E fez parte de duas listas do inventário do rei Valdemar II da Dinamarca, por volta de 1230. Numa dessas listas constavam 800 bacalhaus e 16 barris de arenque. A outra lista continha oito toneladas de arenque e 360 bacalhaus. “Não há razão para duvidar de que estávamos a falar de bacalhau do Atlântico”, salientou Bjørn Poulsen.

O bacalhau estava assim na mesa do rei da Dinamarca e, no século XIII, uma infanta portuguesa foi uma das suas consumidoras. Chamava-se Berengária de Portugal e era filha de D. Sancho I. Em 1214 casou-se com Valdemar II. Este veio a ser “o primeiro vínculo dinástico formal entre a Dinamarca e Portugal”, como refere um placard do Museu de Marinha. “Fontes dinamarquesas por volta de 1200 descrevem-nos que era frequente o rei e a sua corte serem abastecidos com bacalhau em todos os sítios da Dinamarca por onde passassem. A rainha Berengária deve ter viajado com o rei, de certeza”, conta ao PÚBLICO o investigador dinamarquês.

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Berengária de Portugal casou-se com Valdemar II da Dinamarca DR

A partir do século XV, iniciou-se a segunda “revolução” da pesca, que, como disse Bjørn Poulsen, envolveu “realmente longas distâncias e muito mais investimento da parte dos pescadores”. Por volta de 1450, os pescadores noruegueses foram para norte de Troms e da Finamarca (ambos condados da Noruega), para a Islândia, ou para as ilhas do Norte da Escócia.

Depois de 1370, os maiores navios alemães também já tinham ido para as águas islandesas. Em 1412, os mercadores ingleses apareceram também nas mesmas águas. Os seus portos para navegar para a Islândia estavam na costa Nordeste de Inglaterra, no Mar do Norte. E em 1492 foi de um destes portos, mais exactamente do de Bristol, que o navegador veneziano Giovanni Caboto, conhecido como John Cabot em inglês, partiu em 1497 com o seu navio Matthew e veio a deparar-se com a Terra Nova (embora os Vikings já tivesse passado por lá). Ou de forma mais aportuguesada: a Terra Nova dos Bacalhaus.

Foi também nos finais do século XV que os navegadores portugueses se depararam com esta terra longínqua. “Vários navegadores, todos eles portugueses, navegaram para o Atlântico Noroeste, tentando achar a contracosta da Índia e depararam-se com a Terra Nova dos Bacalhaus”, conta-nos Álvaro Garrido. O sítio vem já mencionado no planisfério de Cantino, de 1502, uma carta náutica que representa os Descobrimentos portugueses. O historiador dá como exemplos de navegadores os irmãos Corte-Real, João Álvaro Fagundes e João Fernandes Lavrador. Foi com este engano à procura do caminho marítimo para a Índia que a pesca do bacalhau começou para os portugueses.

Contudo, sabe-se muito pouco sobre este episódio: “Não há rasto documental e o que se sabe é indirecto, de registos cartográficos nos mapas e de ilações que se deduzem de rastos documentais mínimos.” Afinal, como diz Álvaro Garrido, esta é uma “saga menor na memória histórica do império português.”

Perseguidos por corsários

Como as distâncias eram grandes (nalguns casos cerca de 2000 milhas de distância), o bacalhau salgado seco começava por ser conservado a bordo. “Era conservado com sal nos porões dos navios. Esse era o método tradicional da salga, que era já usado no arenque pelos povos do Atlântico Norte. Depois era desidratado ao vento e ao sol: com pouco sol e muito vento”, explica Álvaro Garrido. Até há bem pouco tempo este ainda era o método, agora a secagem já é feita com máquinas.

E como eram as embarcações que iam até à Terra Nova? “Não há relatos em concreto”, responde-nos. Apenas podemos ter uma ideia do modo como se pescava com gravuras da Grã-Bretanha feitas no século XVI. “Há alguns relatos de capelões que iam a bordo. Seriam o equivalente a caravelas e a baleeiras. E tanto pescavam bacalhau como baleias”, conta. “Eram navios polivalentes de pesca e carga oceânica, que foram perseguidos por corsários de várias paragens, nomeadamente do Norte de África, deitando ao fundo muitos navios de carga com bacalhau.”

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Planisfério de Cantino, elaborado em 1502 por um cartógrafo português desconhecido BIBLIOTECA ESTENSE UNIVERSITÁRIA DE MODENA, ITÁLIA

Mas em Portugal, o consumo de bacalhau começou muito antes de nós próprios o pescarmos. O bacalhau teria sido introduzido no país trazido pelos povos do Norte na Idade Média. E também existiam tratados de comércio entre Inglaterra e Portugal no século XIV em que Portugal trocava sal por bacalhau.

Aliás, a descoberta do bacalhau como recurso alimentar aconteceu no Norte da Europa, até porque este peixe vive nas águas do Atlântico Noroeste, como salienta Álvaro Garrido. “Mas a prática de um consumo generalizado e a prática de um negócio internacional, que é precocemente global, tem como protagonistas os portugueses.”

Os povos do Norte tinham redes de comércio de bacalhau seco e salgado seco, mas eram fluxos pouco relevantes e menos sistemáticos do que a rede de negócios estabelecida em campanhas de pesca de bacalhau no século XVI por armadores portugueses, bascos e da Grã-Bretanha, explica Álvaro Garrido. “Esta pesca é transoceânica e reúne grandes volumes de capital. O comércio de importação também aumenta porque, entretanto, a pescaria alarga os mercados.” E ainda acrescenta: “Portugal, historicamente, é o maior mercado mundial de bacalhau salgado seco e continua a ser. É um fenómeno de aculturação de um recurso que não habita nas nossas águas.”

E quem consumia bacalhau no final do século XV e início do XVI? “O bacalhau era objecto de um consumo relativamente transversal, embora mais da fidalguia e dos clérigos”, diz o historiador. Por exemplo, podemos encontrar uma referência na peça de Gil Vicente, As Cortes de Júpiter, de 1521. A peça foi apresentada ao rei D. Manuel, a propósito da partida da infanta D. Beatriz, que se iria casar com o duque de Sabóia.

Para pobres ou para ricos?

Há também referência ao bacalhau seco nas listas de compras dos hospitais e das misericórdias portugueses. Além disso, o bacalhau era um recurso alimentar na Quaresma e quando a Igreja indicava que não se podia comer carne. A facilidade da sua conservação possibilitava também que fosse para terras do interior. “Não há prova inequívoca de que o bacalhau fosse um alimento dos pobres, mas há prova de que era um alimento popular e urbano de largo consumo”, explica ainda o historiador.  

E porquê todo o interesse na Terra Nova? “É sabido que ‘as grandes pescarias do globo se situam no encontro de águas frias e tépidas ou nas áreas de afluxo de águas frescas profundas’ – ‘zonas de convergência’, como lhes chamam os geógrafos”, lê-se no livro O Estado Novo e a Campanha do Bacalhau, de Álvaro Garrido de 2004. Ora, as condições bio-oceanográficas, como as correntes frias polares, sobretudo no Labrador, com as águas quentes da corrente do Golfo a sul, são favoráveis ao desenvolvimento de microrganismos que fazem que os bacalhaus se agrupem em zonas relativamente próximas da costa – os grandes bancos, nomeadamente no maior de todos eles, o Grande Banco da Terra Nova.

“Os bancos, imensas plataformas submarinas a pequena profundidade, onde o bacalhau se concentra aproveitando o plâncton, as pescadas e a lula, já eram representados nas cartas como prolongamento dos pesqueiros europeus antes da descoberta da Terra Nova”, lê-se no livro de Álvaro Garrido. Era para aqui que os europeus iam pescar. No livro, Álvaro Garrido avisa que os números são “bastante imprecisos ou até fantasiosos”, mas supõe-se que em 1578 os bancos tenham sido visitados por 700 veleiros portugueses. “Portugal terá sido o primeiro país europeu a enviar expedições.”

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Mês de Março de Josefa de Óbidos e/ou Baltazar Gomes Figueira DR

E é também um dos países onde o bacalhau veio mesmo para ficar, nem que seja à mesa. Basta olhar para o lado esquerdo do quadro Mês de Março de Josefa d’Óbidos e/ou Baltazar Gomes Figueira, de 1668. Como se lê no livro de Álvaro Garrido: “Será o primeiro testemunho pictórico de um bacalhau escalado e aberto, com cura de sal e de sol.”