Harder e Halvorsen, o oficial das SS e o prisioneiro
Nos anos anteriores à II Guerra Mundial, o Hamburgo juntou na mesma equipa um nazi que nunca se arrependeu e um norueguês que esteve num campo de concentração.
O que o futebol uniu, nada irá separar, certo? Nem sempre. O Hamburgo dos anos 1920 tinha um dos melhores avançados alemães da altura e um médio norueguês que lhe dava as bolas para ele marcar os golos. A parceria valeu títulos ao clube e glória a ambos, que até tinham uma relação de alguma proximidade, mas depois veio Hitler, o nazismo e a II Guerra Mundial. E os caminhos que ambos seguiram não podiam ter sido mais opostos. Otto “Tull” Harder, o avançado alemão, juntou-se às SS e terminou a guerra como oficial em vários campos de concentração (e foi julgado por isso), Absjorn Halvorsen, o médio norueguês, recusou-se a colaborar com a ocupação alemã do seu país e quase morreu como prisioneiro num desses campos.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
O que o futebol uniu, nada irá separar, certo? Nem sempre. O Hamburgo dos anos 1920 tinha um dos melhores avançados alemães da altura e um médio norueguês que lhe dava as bolas para ele marcar os golos. A parceria valeu títulos ao clube e glória a ambos, que até tinham uma relação de alguma proximidade, mas depois veio Hitler, o nazismo e a II Guerra Mundial. E os caminhos que ambos seguiram não podiam ter sido mais opostos. Otto “Tull” Harder, o avançado alemão, juntou-se às SS e terminou a guerra como oficial em vários campos de concentração (e foi julgado por isso), Absjorn Halvorsen, o médio norueguês, recusou-se a colaborar com a ocupação alemã do seu país e quase morreu como prisioneiro num desses campos.
Muitas décadas antes da era Bundesliga, a hierarquia do futebol alemão era bem diferente e o Hamburgo era uma das equipas que desafiava o domínio do Nuremberga (que ainda é a segunda equipa com mais títulos, 9, apenas atrás dos 27 do Bayern). Entre 1920 e 1932, o Hamburgo conseguiu conquistar dois títulos nacionais e vários títulos regionais graças a um entendimento perfeito entre as suas duas “estrelas”, o mago norueguês Halvorsen e o gigante alemão (1,90m de altura) Harder, um dos jogadores mais famosos do país e goleador com um acerto impressionante – algumas fontes dão-lhe mais de 300 golos na sua carreira no Hamburgo; na selecção alemã marcou 14 em 15 jogos.
Harder era um goleador, um herói de guerra e uma celebridade. Começou por se notabilizar no Eintracht Braunshweig, da sua cidade natal, passou para o Hamburgo e, com o deflagrar da I Guerra Mundial, Harder juntou-se às forças alemãs e ganhou a cruz de ferro por bravura em combate. Depois da guerra, voltou ao Hamburgo, onde continuou a ser goleador e ganhou fama – teve até um filme a contar a sua vida em 1927, “O Rei dos Avançados-Centro”. “Tull” Harder – a alcunha derivava de Walter Tull, o possante avançado do Tottenham que foi o primeiro negro da história do futebol inglês e também oficial na I Guerra - nunca escondeu as suas opiniões nacionalistas, moldadas, tal como Hitler, pela forma como a Alemanha capitulou na guerra.
Um pouco atrás de Harder jogava Absjorn Halvorsen, um criativo médio norueguês, que se mudou aos 23 anos para Hamburgo, o maior porto da Alemanha, para trabalhar como despachante. Passou um ano incógnito na cidade, mas alguém descobriu que ele era jogador de futebol e não demorou muito a ir parara ao Hamburgo. Jogaram juntos durante quase uma década. Harder jogou no Hamburgo até 1931, Halvorsen ficou mais dois anos, ainda chegou a ser o treinador da equipa e até teve direito a um jogo de despedida, já com o Partido Nacional-Socialista no poder – nesse jogo, o norueguês recusou-se a fazer a saudação nazi.
Halvorsen haveria de voltar à Alemanha em 1936, como treinador da selecção norueguesa que iria participar no torneio de futebol dos Jogos Olímpicos de Berlim. A 7 de Agosto, as figuras maiores do III Reich foram ao futebol. Hitler, Goering, Goebbels e Hess esperavam nada menos que uma vitória triunfante da Alemanha sobre a Noruega, mas assistiram a um triunfo dos nórdicos por 2-0 nos quartos-de-final – conta-se que este foi o primeiro e único jogo de futebol que o Fuhrer viu e nem sequer ficou até ao fim. A Noruega acabaria por cair frente à Itália (futura campeã olímpica) nas meias-finais, mas acabaria por ter a consolação do bronze frente à Polónia.
Antes de a guerra começar, os dois homens ter-se-ão encontrado quando Halvorsen saiu de Hamburgo, Harder terá feito questão de se ir despedir do amigo norueguês e esta terá sido a última vez que se cruzaram. Nesta altura, Otto Harder já era membro do Partido Nacional-Socialista e da Schutzstaffel, as infames SS. Quando o conflito começou em 1939, Harder foi destacado para vários campos de concentração em território alemão. Halvorsen, por seu lado, era um resistente à ocupação nazi da Noruega, e, como figura destacada do desporto do seu país, apelou ao boicote dos seus compatriotas às competições organizadas pelos invasores. Para além disso, estava envolvido na publicação de jornais clandestinos anti-nazis. A Gestapo descobriu e prendeu-o em 1942. Um ano depois, foi enviado para a França ocupada e, depois, para a Alemanha.
Harder e Halvorsen nunca se terão cruzado como guarda e prisioneiro no mesmo campo. Mas está estabelecido que perto do final da guerra, não se cruzaram no mesmo por uma questão de meses. O campo de Neuengamme ficava perto de Hamburgo, a cidade onde chegara 20 anos antes para trabalhar como despachante. Harder já lá não estava, tinha ido para outro campo, Halvorsen chegou lá a pesar 48kg, debilitado por uma pneumonia, pelo tifo e pela malnutrição extrema que sofreu nos outros campos. Nem este nem os outros onde tinha passado eram campos de extermínio, como Auschwitz ou Treblinka, eram campos onde os prisioneiros trabalhavam até à morte – segundo escreve Kevin E. Simpson no livro “Soccer under the Swastika”, Neuengamme tinha “um índice de mortalidade de 45 por cento”.
Quando a guerra acabou, Halvorsen voltou ao seu país e assumiu um cargo dirigente nas estruturas do futebol norueguês. Harden, o oficial da SS, foi julgado por crimes de guerra e condenado a 15 anos de prisão, tendo sido libertado após quatro anos e meio no cárcere, mas sem arrependimentos sobre o seu papel no terror nazi. Em liberdade, a celebridade desportiva de Harder foi recuperada e o seu passado nazi escondido debaixo do tapete. Quando morreu, em Março de 1956, foi enterrado com uma bandeira do Hamburgo a cobrir o caixão. Um ano antes, em Janeiro de 1955, Halvorsen fora encontrado morto num quarto de hotel.
Não se sabe exactamente se os dois homens voltaram a falar depois da guerra, mas tiveram oportunidade para tal em 1953, num jantar que antecedeu um Alemanha-Noruega em Hamburgo de qualificação para o Mundial de 1954 (em que a Alemanha seria campeã). A presença de Halvorsen nesse jantar está confirmada e documentada, quanto a Harder apenas se sabe que terá sido convidado.
Avancemos 30 anos para o epílogo. A Alemanha, plenamente reintegrada na família desportiva internacional, organiza o Mundial de 1974. Hamburgo é uma das cidades-sede e os organizadores locais fazem uma brochura com os heróis futebolísticos da cidade. Uma página é dedicada a Otto Harder, o avançado que foi oficial das SS, em que é descrito como um exemplo para a juventude. Um dia antes de o folheto ser distribuído, alguém deu por isso e, nessa noite, foi arrancada à mão a página de Harder de cada um dos 100 mil exemplares.
* Planisférico é uma rubrica semanal sobre histórias de futebol e campeonatos periféricos. Ouça também o podcast