Com os Foo Fighters, duas horas e meia foram uma noite inteira
Dave Grohl disse que podia ficar a gritar em palco a noite toda e não temos como duvidar. Não foi a noite toda, mas foram duas horas e meia de rock como puro e sincero entretenimento. No segundo dia de Nos Alive, apesar de Savages, The Kills ou Warpaint, tudo parecia convergir para os Foo Fighters.
Aconteceu já quase no final do longuíssimo concerto de duas horas e meia. A banda do ex-Nirvana acabara de tocar Best of you. A canção crescera, o público cantara a melodia quando a banda já não tocava, a banda regressara à canção para mais um par de refrões. E depois… Depois, esse clássico dos concertos de massas em Portugal, os cânticos de claque de futebol, fizeram-se ouvir nas vozes das dezenas de milhar frente ao palco principal do Nos Alive, sábado, segundo dia de festival, e, momento nada clássico, inédito, diríamos, a banda trata de adaptar o “E salta Dave, e salta Dave, olé, olé” a canção instantânea. Não ficámos por aqui.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Aconteceu já quase no final do longuíssimo concerto de duas horas e meia. A banda do ex-Nirvana acabara de tocar Best of you. A canção crescera, o público cantara a melodia quando a banda já não tocava, a banda regressara à canção para mais um par de refrões. E depois… Depois, esse clássico dos concertos de massas em Portugal, os cânticos de claque de futebol, fizeram-se ouvir nas vozes das dezenas de milhar frente ao palco principal do Nos Alive, sábado, segundo dia de festival, e, momento nada clássico, inédito, diríamos, a banda trata de adaptar o “E salta Dave, e salta Dave, olé, olé” a canção instantânea. Não ficámos por aqui.
Os Foo Fighters também adaptaram o cântico seguinte, em modo rockalhada de pub para estádio completo – “não é uma canção dos Iron Maiden?”, pergunta o vocalista. Recusará o terceiro cântico, “campeões, campeões, nós somos campeões” – “isso não é um single e eu preciso de singles, preciso de dinheiro”, disparou –, e, felizmente, não percebeu o que se cantava quando, para tornar mais surreal o surrealismo do momento, se ouve entoado a plenos pulmões as estrofes finais do hino nacional. À nossa esquerda, um grupo de holandeses acompanha a cadência do “às armas” com palmas bem medidas e à nossa direita, um casal inglês mostra um sorriso muito aberto – “ainda bem que viemos, isto é que é uma festa a sério”, imaginámo-los comentar.
Foi um momento inesperado, qual humor nonsense em espectáculo rock a céu aberto, mas a verdade é que, se havia concerto em que tal pudesse acontecer, esse só podia ser o dos Foo Fighters deste Dave Grohl que interage longamente com o público entre canções, que surge em palco como o tio porreiro que é estrela sem tiques de estrela e que toca as canções todas que todos queriam ouvir, canções naquele equilíbrio tornado fórmula entre a melodia orelhuda, a distorção pronta a servir e a citação bem doseada dos heróis do passado – um toque de Led Zeppelin, uns pozinhos de Pixies, headbanging de metal clássico, Tom Petty revisto pelos Ramones e até, em determinado momento, o balanço latino rock de Santana.
Eles gostam muito do que fazem, o público adora o que ouve e Dave Grohl acredita sinceramente no rock como festa descomunal para unir multidões à volta de guitarras, baixo e bateria – teclados também, mas ouvem-se menos. Neste contexto, não podia correr mal. O segundo dia do Nos Alive foi portanto, e inevitavelmente, de Dave Grohl e dos seus Foo Fighters.
O casulo das Warpaint e a luta dos The Kills
Ao final da tarde, as Savages subiram ao palco Heineken, o maior dos ditos secundários, e depararam-se com uma tenda longe de lotada e com um ambiente sem quaisquer sinais da euforia vivida nas passagens anteriores por Portugal. Coube a Jehnny Beth, empoleirada sobre a assistência, descalça, ou assertiva e dominadora no palco, salto alto vermelho contrastando com o preto que imperava na roupa e no cenário, centrar em si as atenções dispersas e gerar a energia e alguma da comunhão entre banda e assistência que é habitualmente marca dos concertos das autoras de Silence Yourself e Adore Life. Depois de “I need something new, da tumultuosa The answer ou da esperançada Adore, soltou-se a palavra de ordem final (“Don’t let the fuckers get you down”) e aquele rock enegrecido em pós-punk e dramatizado com Siouxsie & The Banshees no horizonte provocou o efeito catártico que, a início, parecia impossível atingir.
Mais tarde as Pega Monstro, autoras recente do recomendadíssimo Casa de Cima, mostraram no palco Nos Clubbing – onde antes os Pista, com a colaboração final do sempre enérgico Alex D’Alva Teixeira, haviam feito a festa ao som do já clássico Puxa – como a sua música é hoje, em concerto, matéria fluída em constante transformação, torrente correndo sem parar e que ora nos abraça no conforto de uma melodia quase sussurro, ora nos agita em explosão sónica sem rédeas, ora conjuga essas duas realidades enquanto a bateria de Júlia Reis e a guitarra de Maria Reis se envolvem num turbilhão de onde emergem harmonias vocais inspiradas no tempo sem tempo do nosso cancioneiro. Eram, porém, poucos os felizardos a testemunhar o que ali se passava. A hora pedia jantar e, na zona de restauração, os que esperavam nas filas ansiavam o momento em que conseguissem lugar nas mesas ou, como era opção de tantos, espaço na relva artificial para improvisar um piquenique rápido.
No palco principal houve, entre o final de tarde e o início da noite, nostalgia rockeira com os The Cult e pop rock sem chama pelos Courteeners (de Manchester, “no Reino Unido, que recordamos é parte da Europa”, comentou o vocalista Liam Fray com o Brexit como pano de fundo). Foram concertos seguidos como entretém enquanto não chegava a hora dos cabeças de cartaz. Em mais um dia de lotação esgotada vivido sem sobressaltos assinaláveis, investigava-se o que os sete palcos tinham para oferecer, punha-se a conversa em dia, ensaiava-se mais uma pose para publicar em rede social. Podia-se tentar espreitar Carminho, programada para o Fado Café, ou ouvir as Golden Slumbers no Coreto no extremo oriental do recinto. Aguardava-se. Ambiente que não foi excepção quando subiram a palco os The Kills de Jamie Hince e Allisson Mosshart (mais tarde convidada dos Foo Fighters em La dee da, uma das novas canções do álbum a editar em Setembro, Concrete and Gold). Ambiente que se sentiu como excepção no casulo construído pelas Warpaint no palco Heineken (ver caixa).
Se as californianas, no palco Heineken, cativaram, os The Kills, uma das bandas de destaque no alinhamento, chegaram antes dos cabeças de cartaz mas nunca pareceram conseguir adequar a natureza da sua música à dimensão do palco e assistência que tinham perante si. Tiveram contra si um público que aguardava essencialmente a chegada dos Foo Fighters e que nunca se mostrou verdadeiramente interessado no que se passava em palco. Para além disso, a verdade é que esta música, onde o espírito carnal do velho blues e o lado transgressor do rock’n’roll, pintalgado aqui e ali de electrónica vintage, pede proximidade, pede que sintamos o jogo de tensão e sedução entre Jamie Hince e Alisson Mosshart, pede que lhes vejamos o suor no rosto – deles e do baterista e multi-instrumentista que os acompanham.
Como cenário de palco, víamos palmeiras e vulcões em erupção, mas nunca a fantasia sugerida pareceu ganhar verdadeira densidade. Claro que Kissy kissy é blues misterioso a que é difícil ficar indiferente, que o silvo ameaçador de Siberian nights é tormenta muito agradável e que o inspirado minimalismo rock pulsante de Love is a deserter e No wow são irrecusáveis. Claro que Alisson Mosshart faz de cada canção espaço visceral, selvagem, que é contraponto perfeito para a pose de Jamie Hince – casaco de cabedal e dança em espasmos; corpo encarnando uma galeria de heróis que vai de Gene Vincent a Mick Jones –, mas no Nos Alive faltou realidade a tudo isso que sabemos ou intuímos. Há alguns anos, a banda que editou em 2016 Ash & Ice passou pela tenda que serve de Palco Heineken. Foi concerto de emoções vividas à flor da pele, num espaço que transbordava de público. Parece ser essa a dimensão certa para que a sua música respire verdadeiramente. No grande campo aberto do palco principal do festival, passaram sem deixar marca. No segundo dia do Nos Alive, a sensação é que todos sabiam ao que vinham. Estava escrito nas t-shirts de tantos: Foo Fighters. Estávamos cada vez mais próximos das 24h e, no palco secundário, os pobres Local Natives começavam a ver o público fugir-lhes até não restarem pouco mais que umas dezenas de almas. Toda a gente convergia na mesma direcção.
"Posso ficar aqui a gritar a noite inteira"
Horas antes os Foo Fighters, presos numa tempestade em Madrid, onde haviam tocado na noite anterior, receavam não conseguir chegar ao Passeio Marítimo de Algés. Agora, ali estavam a cumprir a sua função como uma das últimas representantes dessa espécia que são as bandas de estádio. “Querem rockar? Estão preparados?”, exclamou Grohl no final de All my life, a primeira do alinhamento de duas dezenas de canções. Que sim e que sim, irrompeu o público. Assim sendo, cá vai disto. Existem as canções que tornaram os Foo Fighters um fenómeno global e transgeracional – Times like these, Learn to fly, My hero, Monkeywrench –, e existe aquilo que faz em concerto a banda liderada por um homem que sabe todos os truques da história do rock. Porque os Foo Fighters são, na verdade, uma sempre optimista, efusiva e bem-humorada celebração dessa história, sem complexificar e directos ao assunto.
Em Cold day in the sun apresenta-se a banda e Pat Smear toca um pouco de Blitzkrieg bop, dos Ramones, o baixista Nate Mandel oferece Another one bites the dust, dos Queen, e o muito aplaudido baterista Taylor Hawkins faz o seu melhor para, em troca de cânticos com a assistência, evocar o seu herói Freddie Mercury em pleno Wembley. Em Monkeywrench, já depois do dueto com Alisson Mosshart, já na segunda metade do concerto, todas as luzes de palco se apagam para que se iluminem os telemóveis do público (e o isqueiro ocasional dos tradicionalistas), antes de a luz e o refrão regressarem novamente em volume altíssimo.
As canções alongam-se em solos de guitarra porque concertos rock pedem solos de guitarra, o público parece não parar de saltar e espalhar alegremente à sua volta a cerveja que os copos não conseguem conter – tanta alegria, demasiada agitação. Dave Grohl conta a história do sobressalto da viagem mas correu tudo bem e aqui estão eles e “vamos cantar esta juntos”. Chega Run e tudo canta. Chega This is a call e tudo continua a cantar e se aparece Best of you há que continuar a fazê-lo e está tudo tão entusiasmado que hão-de aparecer cânticos da bola para extravasar e os Foo Fighters, porque são os Foo Fighters, entertainers sem peneiras, até tocam os ditos cânticos. “Sabem que posso ficar aqui a gritar a noite inteira, não sabem?”. Não aconteceu, mas acreditamos que Grohl seria capaz de o fazer. De qualquer modo, duas horas e meia já soube a noite inteira.
Depois do arranque, quinta-feira, em que se destacaram os The xx, o Nos Alive viveu para o concerto dos Foo Fighters, regressados seis anos depois. O festival termina este sábado com actuações de Depeche Mode, Fleet Foxes, Avalanches, Spoon ou Cage The Elephant.