BdP recusou partilhar detalhes sobre “apagão” dos offshores
IGF pediu dados ao Banco de Portugal para cruzar informação sobre 10.000 milhões, mas o supervisor invocou segredo e só enviou números do seu site. BdP fica em silêncio sobre a cooperação com o fisco.
O caso dos 10.000 milhões de euros de transferências para offshores que não ficaram registadas no sistema central do fisco deverá levar a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) a estudar um reforço da cooperação com o Banco de Portugal (BdP) sobre os fluxos enviados a partir de Portugal para as jurisdições consideradas paraísos fiscais.
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O caso dos 10.000 milhões de euros de transferências para offshores que não ficaram registadas no sistema central do fisco deverá levar a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) a estudar um reforço da cooperação com o Banco de Portugal (BdP) sobre os fluxos enviados a partir de Portugal para as jurisdições consideradas paraísos fiscais.
A proposta para que as duas instituições partilhem este tipo de informação partiu da Inspecção-geral de Finanças (IGF) na auditoria ao “apagão” dos 10.000 milhões de euros. Mas, para já, o supervisor liderado por Carlos Costa mantém-se em silêncio sobre este cenário, uma das recomendações deixadas ao fisco.
Como os bancos têm de comunicar à administração fiscal e ao Banco de Portugal um conjunto de dados (em parte coincidentes) sobre as transferências, a IGF pediu a colaboração do banco central na auditoria, para poder cruzar informação. A resposta do BdP chegou, mas não foi aquela que os auditores pretendiam, porque o banco central invocou os deveres de segredo para não partilhar dados individualizados, escudando-se nas normas de sigilo previstas no regime geral das instituições de crédito.
A partilha da informação ajudaria a perceber, por exemplo, se os valores que hoje se consideram correctos relativamente às transferências realizadas entre 2011 e 2014 (16.900 milhões de euros, em vez de 7100 milhões) coincidem com aqueles que o BdP conhece, mesmo que o fisco e a AT tenham listas diferentes de paraísos fiscais. O que a IGF pediu foram informações sobre o número de transferências realizadas, o valor de cada uma (acima de 12.500 euros, como acontece nas declarações enviadas ao fisco pelos bancos), a identificação fiscal da entidade e do ordenante desses fluxos.
A resposta do BdP seguiu com o código CRI/2017/00012251. E as únicas estatísticas enviadas em anexo a essa resposta foram estatísticas agregadas que estão publicadas no site do Banco de Portugal. É a mesma informação que está acessível a qualquer cidadão que consulte a área de estatística online do supervisor, o BPStat, e ali procure o total das "transacções e posições para as categorias funcionais de investimento de carteira e investimento directo”. Não seguiu nada mais para a IGF.
Ao PÚBLICO, o BdP disse ter enviado a informação “que poderia ser legalmente disponibilizada” e garante ter prestado “toda a colaboração que podia prestar nos limites dos diferentes deveres de segredo (de supervisão e estatístico) a que está vinculado”.
Confrontado com o facto de o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras considerar “ilícita, designadamente para efeitos estatísticos, a divulgação de informação em forma sumária ou agregada e que não permita a identificação individualizada de pessoas ou instituições”, o Banco de Portugal frisou ter incluído “informação estatística, de forma agregada” dentro do “estrito cumprimento da lei”.
Partilhar e reforçar
Ao BdP cabe actuar na prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo, por exemplo, avaliando e comunicando operações suspeitas. Com a AT, a PJ, a PGR, a CMVM e outras entidades, o BdP pertence à comissão de coordenação das políticas de prevenção destas matérias, a funcionar na dependência do Ministério das Finanças.
Quando, no ano passado, o BE lançou um projecto de lei, entretanto já em vigor, para tornar obrigatória a publicação das estatísticas das transferências no Portal das Finanças, o BdP emitiu um parecer onde via com bons olhos essa medida de transparência, considerando mesmo que ela iria permitir “até ao Banco de Portugal validar a qualidade dos dados que recolhe”.
Agora, a IGF recomendou ao fisco estudar propostas legislativas de cooperação com o BdP. A instituição liderada por Carlos Costa mantém-se, porém, em silêncio quando questionada pelo PÚBLICO se admite reforçar formas de cooperação com a AT e se entende ser possível dar seguimento à recomendação da IGF sem prejudicar a partilha de informação e ao mesmo tempo salvaguardar o dever de segredo. Questionado três vezes sobre esta matéria deste dia 19 de Junho, o BdP não respondeu.
A falta de cooperação entre o fisco e o BdP foi uma das questões levantadas recentemente durante os trabalhos da comissão de inquérito do Parlamento Europeu aos Panama Papers, quando uma missão de eurodeputados esteve em Lisboa nos dias 22 e 23 de Junho a ouvir deputados, responsáveis do BdP, governantes, ex-ministros, responsáveis da AT e da Procuradoria-Geral da República. Aí, os tópicos abordados foram mais extensos do que a mera ausência de partilha de informação sobre as transferências entre o fisco e a AT.
Um dos temas incidiu sobre os três programas de amnistia fiscal que permitiram regularizar património colocado no exterior. Isto, porque cabe ao Banco de Portugal conservar em arquivo (durante pelo menos dez anos) a declaração de regularização tributária e, em todos os RERT, ficou previsto que esse documento fica protegido de sigilo e não pode ser utilizado como indício para efeitos de qualquer procedimento tributário relacionado com os factos e os rendimentos declarados.