Selecção feminina, a história de uma vida interrompida
A pouco mais de uma semana da estreia de Portugal no Campeonato da Europa, o PÚBLICO revisita, pela voz de três das protagonistas, os primeiros dias da equipa nacional, no início da década de 1980.
A folhear um álbum de memórias, a empunhar um par de luvas antigas ou a forçar uma camisola da selecção que quase já não reconhece o corpo, todas elas se debatem, 36 anos depois, com uma dúvida que nunca terá resposta: o que seria hoje do futebol feminino português se não tivesse sido travado por aquele hiato de uma década? Até onde teria chegado uma geração de jogadoras que, contra ventos de preconceitos e marés de longas jornadas de trabalho, começou a escrever a história numa folha ainda em branco? Foi a esse passado de uma equipa de pioneiras que o PÚBLICO regressou, à procura das raízes de um projecto que, entre intervalos e solavancos, terá o seu ponto alto dentro de dez dias, com a estreia de Portugal num grande torneio internacional.
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A folhear um álbum de memórias, a empunhar um par de luvas antigas ou a forçar uma camisola da selecção que quase já não reconhece o corpo, todas elas se debatem, 36 anos depois, com uma dúvida que nunca terá resposta: o que seria hoje do futebol feminino português se não tivesse sido travado por aquele hiato de uma década? Até onde teria chegado uma geração de jogadoras que, contra ventos de preconceitos e marés de longas jornadas de trabalho, começou a escrever a história numa folha ainda em branco? Foi a esse passado de uma equipa de pioneiras que o PÚBLICO regressou, à procura das raízes de um projecto que, entre intervalos e solavancos, terá o seu ponto alto dentro de dez dias, com a estreia de Portugal num grande torneio internacional.
Alfredina Silva, Gena e Paula Lessa. Três rostos dos 16 que, naquele 24 de Outubro de 1981, deram pela primeira vez a conhecer a selecção portuguesa além fronteiras. Três rostos de atletas nas horas vagas que desbravaram um caminho pedregoso, avançando, destemidas, rumo ao desconhecido. Eram outros tempos. Trinta e seis anos no calendário do futebol é uma eternidade, especialmente num período em que as diferenças para a Europa das grandes potências (desportivas e económicas) eram tão profundas que não restava a Portugal mais do que tentar desafiar as probabilidades.
Foi em Le Mans que a selecção feminina se estreou, 60 anos depois do primeiro pontapé na bola da homóloga masculina. Pela frente, estava nada menos do que a França, campeã do mundo em título, em rota de preparação para o Campeonato da Europa e à espera de um adversário à medida das suas necessidades. O jogo era particular, mas apenas para as anfitriãs. Para Portugal, a estreia seria sempre a doer. Independentemente das provocações do seleccionador rival, da sobranceria gaulesa e das expectativas rasas com que a generalidade dos adeptos olhava para o encontro, as portuguesas tinham viajado para competir. Ponto.
“Eu tinha 17 anos, queria era jogar”, sorri Alfredina, com os braços pousados sobre uma colecção de recortes de jornais da época que atestam muito do que dirá ao longo da hora de conversa que se seguiu. “Lembro-me de que foi com surpresa que recebi a convocatória, estava a jogar no Leixões. Não tinha uma perspectiva do que poderia ser a selecção, por isso foi com curiosidade que integrei os treinos. Tive oportunidade de treinar sempre em relvado, duas vezes por dia, de estar em estágio a preparar unicamente aquele jogo”.
Para a médio/extremo que mais tarde se destacaria no Boavista, era tudo novo. E o mesmo pode dizer-se não só em relação às companheiras de equipa, mas também no que respeita ao treinador e ao seleccionador (sim, porque à época as competências dividiam-se), José Pacheco e Sousa Ribeiro, respectivamente. Talvez por isso, porque se tratou quase de um projecto de emergência, de uma equipa constituída em cima do joelho – o próprio técnico assumiu ter sido apanhado de surpresa – a escolha tenha recaído sobre uma armada que marchava exclusivamente a Norte, com oito atletas “axadrezadas”, cinco do Coelima, duas do Leixões e uma do Foz.
“Basearam-se um pouco mais no Boavista, porque internamente era a equipa mais forte. E no seu todo acho que até funcionava melhor assim, porque era um grupo muito coeso. Nós já conhecíamos as movimentações das colegas, sabíamos que quando avançávamos tínhamos cobertura nas costas e isso fez um pouco de diferença”, interpreta Paula Lessa, médio de vocação ofensiva que também fez carreira no Bessa e que, aos 20 anos, se via na iminência de representar o país.
O “poder físico” francês
Adversárias frequentes ou companheiras de equipa ao serviço dos clubes, o grau de familiaridade dentro daquele balneário chocava com a incógnita em volta do contexto que iam enfrentar. Os serviços mínimos estavam garantidos — “A nível de material de jogo e de treino, a federação dava-nos tudo” —, a viagem para França correu como previsto, era preciso agora lidar com a ansiedade pré-competição: “Na noite antes desse jogo, fiquei com a Alice [que foi titular na baliza] no quarto. Ela era uma pessoa muito calma, mas nesse dia estava um pouco nervosa. E eu dizia-lhe: ‘Não te preocupes, vai correr bem’. Eu estava descontraída, porque depois da palestra do treinador sabia que não ia jogar, por isso estava impecável. E lembro-me de ela estar a fumar cachimbo para descontrair e de falarmos sobre como ia correr”, recorda Gena, guarda-redes que integrou a convocatória com 17 anos, depois de ter brilhado ao serviço do Foz, por empréstimo do Boavista.
Quando a equipa subiu ao relvado do Estádio Municipal de Le Mans, perante 1508 adeptos, percebeu finalmente ao que ia. E o que mais saltava à vista na selecção francesa era, nas palavras de Gena, “a envergadura física”. “Elas tinham atletas com grande poder físico”, corrobora Alfredina. “Notávamos uma diferença de andamento, principalmente na condição física, porque a maioria das atletas eram trabalhadoras e isso roubava-nos tempos para nos prepararmos”, desenvolve Paula Lessa.
O poderio da França tinha sido construído à base de um quadro competitivo estável e organizado, de um regime de preparação mais rigoroso e de uma experiência internacional acumulada. De um lado, estava um país com cerca de 10.000 futebolistas no feminino. Do outro, um “outsider” com pouco mais de 400 praticantes, com um manancial de mão-de-obra tão curto que atletas com 12 anos já integravam equipas de seniores. As forças em litígio eram desiguais, mas o encanto do futebol reside justamente nessa possibilidade permanente de questionar a lógica.
“Tudo aquilo era novo para nós, mas não foi isso que nos assustou. Podiam existir todas as diferenças do mundo que queríamos era jogar. Essa atitude e esse talento natural que existe na jogadora portuguesa, tudo isso levou a que se encarasse o jogo unicamente com o prazer de jogar”, destaca Alfredina, dispondo em cima da mesa os argumentos que Portugal apresentou: “Nós tentávamos combater essa realidade com o jogo de pé para pé, com circulação de bola, e elas foram um pouco surpreendidas por essa forma de abordarmos o jogo”.
Tão surpreendidas que, apesar de apresentarem “uma linha defensiva muito alta”, que anulou por completo o jogo aéreo português, não foram capazes de chegar ao golo. Portugal também não e uma partida que as francesas encaravam como uma oportunidade para olearem a máquina redundou num empate, que deixou meia Europa de boca aberta e que “forçou” Francis Coché, o seleccionador gaulês, a reconhecer a “inesperada” qualidade das rivais.
Seria injusto falar em desleixo na preparação. Desconhecimento talvez seja a palavra mais apropriada. Numa década em que a informação viajava bem mais devagar do que nos dias que correm, a percepção que existia fora de portas sobre a real valia do futebol português convidava a surpresas desta envergadura. Uma selecção de estreantes a bater o pé às campeãs mundiais, com várias jogadoras formadas à base das exigências da rua: “Muitas de nós, no início, jogávamos com rapazes e, nesse contexto, ou éramos competentes ou íamos para a baliza”, aponta Alfredina.
“Arrumar com o projecto”
Portugal acabava de passar com distinção o teste da sobrevivência. Pareciam lançadas as bases para um projecto de futuro, mais estruturado e ambicioso. Afinal de contas, a matéria-prima estava lá — e uma vontade indómita também — e o momento parecia perfeito para recuperar o tempo perdido para as locomotivas do futebol europeu. Puro engano.
A esse embate seminal seguiu-se a fase de qualificação para o Europeu de 1984. Pelo meio, num particular a 6 de Fevereiro de 1983, disputado em La Guardia, a defesa central São Tato — “Ela tinha um remate como eu nunca vi; uma vez torceu-me um pé só com a força do pontapé dela”, ilustra Gena — faria o primeiro golo de sempre da selecção feminina, frente a Espanha. Mas o saldo de dois empates e quatro derrotas na fase de apuramento terá refreado os ânimos na federação. O último jogo dessa caminhada ocorreu em Junho do mesmo ano, no Bessa, frente à Itália. E foi o último jogo de uma geração.
É aqui que entramos na carruagem dos porquês. “Não havia um projecto concertado para se aproveitar esse momento da selecção e dar um impulso importante ao futebol feminino. Depois de 1983, a Federação Portuguesa de Futebol acabou com a selecção nacional feminina e só recomeçou em 1993. Nesses 10 anos, ficámos numa situação de não evolução”, descreve Alfredina Silva, que nas duas últimas épocas treinou a equipa feminina do Boavista e conhece como poucas os bastidores da modalidade.
Desilusão, tristeza, é relativamente fácil descrever o estado de espírito que se apoderou então das jogadoras. O que não é fácil é encontrar uma razão sólida para este abandono de um projecto empurrado abruptamente para o chão quando ainda dava os primeiros passos. Cada uma das atletas tem uma interpretação e Gena, que hoje se divide, desportivamente, entre a natação e alguns jogos “de velhas guardas”, apresenta a sua: “Nunca quiseram gastar dinheiro com o futebol feminino. Se calhar pensavam que, como éramos tão boas cá dentro, chegávamos lá fora e ganhávamos aquilo a brincar. Não ganhámos e decidiram arrumar com o projecto”, aponta, lamentando que o fenómeno tenha sido tão “menosprezado” durante tanto tempo.
Afinal, as pressões realizadas por algumas das jogadoras do Boavista no final da década de 1970, com um abaixo-assinado à mistura, enviado para os clubes e para a federação, no sentido de ser constituída uma selecção nacional, tinha tido um resultado efémero. Na altura, explicava então a capitã Fátima Azevedo (citada pela imprensa desportiva), o organismo que tutelava o futebol nacional limitou-se a ignorar a solicitação das atletas.
Uma oportunidade perdida
Foi só quando a federação francesa, aparentemente impressionada pela capacidade do Boavista nos torneios realizados extramuros, endereçou um convite à homóloga portuguesa para um encontro de preparação, que se avançou para uma convocatória apressada da primeira selecção. Tão apressada como a decisão de voltar a interromper um ciclo que se anunciava promissor.
“Nunca percebi bem aquela paragem tão grande. É daquelas coisas que pouco falamos entre nós. O facto de não haver um número razoável de equipas para formar um campeonato nacional, se calhar não contribuiu para que a federação apostasse mais no futebol feminino. Mas é uma opinião, nunca me debrucei muito sobre isso, não tenho uma resposta”, avança Paula Lessa, que no total cumpriu três jogos com a camisola de Portugal, num contexto de muitas alterações e mexidas no “onze” em que sublinha “o cuidado do seleccionador de dar oportunidades a muitas das atletas”.
Foi uma década completa de intervalo. Uma interrupção tão longa que leva as protagonistas de outrora a perguntarem-se como teria sido se Portugal não tivesse ficado tão para trás na corrida. “Acredito que teríamos chegado lá [à fase final do Europeu] mais cedo. Foi um trabalho que ficou sem continuidade. Perdeu-se uma oportunidade de preparar a sucessão, porque o Boavista tinha excelentes jovens jogadoras, para lá da nossa geração. Foi uma pena terem parado”, lamenta.
Este é um ponto de vista que combina na perfeição com o de muitas das colegas de então, com Alfredina à cabeça. “O feito que a selecção nacional alcançou agora, de estar presente num Europeu, foi muito importante, de facto, e eu pergunto se não tivesse acontecido este interregno, se não podíamos ter participado mais vezes em fases finais”.