O que de mais importante se passa hoje nas democracias passa-se na América de Trump
É nos EUA, é na política americana que se encontra a chave para travar e, a prazo, remover Donald Trump.
Há um fogo em curso que ameaça matar muita gente: a Presidência Trump. E é muito connosco, porque está a dar-se um considerável agravamento das tensões internacionais, cujo resultado podem ser guerras ou a Guerra. A qualquer momento, do modo que as coisas estão, pode haver um incidente grave e uma escalada difícil de travar, até pelas idiossincrasias do “win, win, win” de Trump, embora, à data em que escrevo, ainda haja muita gente nos EUA capaz de o travar. Mas o risco de conflitos graves está a aumentar rapidamente.
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Há um fogo em curso que ameaça matar muita gente: a Presidência Trump. E é muito connosco, porque está a dar-se um considerável agravamento das tensões internacionais, cujo resultado podem ser guerras ou a Guerra. A qualquer momento, do modo que as coisas estão, pode haver um incidente grave e uma escalada difícil de travar, até pelas idiossincrasias do “win, win, win” de Trump, embora, à data em que escrevo, ainda haja muita gente nos EUA capaz de o travar. Mas o risco de conflitos graves está a aumentar rapidamente.
Em pelo menos três conflitos, os EUA tem demasiado perto a Rússia (na Síria, na Coreia), a China (na Coreia ou Taiwan) e o Irão, que é uma importante potência regional, e que são adversários a sério, não os talibans ou a Al-Qaeda ou a Venezuela de Maduro. Há um caso de crescendo de tensões eventualmente justificável, mesmo que mal conduzido, o da Coreia do Norte, mas todos os outros casos são desnecessários, podiam não acontecer, a não ser como resultado de uma política externa caótica, aos saltos e aos surtos, feita de actos cujo objectivo é, como tudo o que Trump faz, casuístico, propagandístico e autocentrado. É uma política imprevisível não por táctica, mas por ignorância, muito menos presa a qualquer concepção imperial do poder americano, ou sequer aos interesses do “Make America Great Again”, que tem uma componente isolacionista.
Há uma diferença fundamental entre a política interna de Trump, que corresponde a interesses reais e a uma ideia sobre o declínio interior americano, confusa e irrealista, mas que existe e tem fundamentos, e a política externa, campo em que o pensamento de Trump, se é que assim se pode chamar, era aceitar um status quo Trump-Putin, muito favorável aos russos, com a retirada dos EUA de todos os conflitos internacionais a não ser em matéria de acordos comerciais. Esta política era a desejada, mas não é a que está a ser seguida, porque Trump não escapa a ser pessoalmente confrontado pelos eventos, pois a personalização dos EUA no seu Presidente introduz uma mudança muito significativa no quadro das relações internacionais.
E, como é Trump a ser posto em causa, ele “rabia” por todos os lados, gera contradições sobre contradições, apenas moderado pela sua melhor equipa, a da Defesa e do Departamento de Estado, mas não sabemos até que ponto. Um caso típico do que estamos a falar é a perigosa carta-branca dada aos sauditas, que, como é óbvio, a começaram imediatamente a usar no Qatar, um aliado tradicional dos EUA onde se encontra uma importante base para o combate ao ISIS. Trump aceitou, sem medir as consequências, ser parte no conflito entre sunitas e xiitas, e entre a Arábia Saudita e o Irão.
Mas voltando à personalização da Presidência em Trump, isto faz com que a sua força não esteja nos mísseis que lança contra a Síria ou no passeio dos porta-aviões ao largo da Coreia, mas dentro dos EUA. É nos EUA, é na política americana que se encontra a chave para travar e, a prazo, remover legalmente ou por eleições, Trump. E, diferentemente do que pensam muitos democratas, não vai ser fácil nem vai ser bonito de se ver. Vai ser um processo duro, difícil, quase uma guerra civil tanto pacífica quanto possível, mas cujo rastro de violência está já aí à vista de todos.
O problema é que Trump, legitimamente eleito com uma “pequena ajuda” dos seus amigos russos, não vai querer ser legitimamente deposto, em caso de ilegalidades ou por uma derrota eleitoral. Para evitar perder, o homem do “win, win, win” vai fazer tudo o que possa, legal ou ilegalmente, para ficar no poder. E como o que se está a passar nos EUA é a tentativa de substituir a democracia, com os seus procedimentos, divisão, equilíbrios de poder e primado da lei, por uma autocracia assente no poder pessoal de Trump e da sua família, usando e abusando de todos os poderes que tem, e são muitos, os riscos são enormes.
Num dos seus últimos “tweets”, Trump disse uma enorme verdade que convinha aos seus adversários compreender: “O meu uso das redes sociais (“social media”) não é Presidencial — é PRESIDENCIAL DOS DIAS MODERNOS (MODERN DAY PRESIDENTIAL).” E tem razão, Trump é muito mais “moderno” que os seus adversários, característica sobre a qual já escrevi várias vezes e repito. Ele percebeu como ninguém, no exercício do poder político, a enorme ligação entre o populismo e as redes sociais, e como estas podem ser usadas para criar um ecossistema político e social fechado, agressivo, militante, excitado, identitário, que não comunica com o exterior de forma racional, pelo que se torna imune ao saber (a “nova ignorância”), à verdade (daí as fake news, que Trump tenta todos os dias inflectir para os “outros”) e à mentira, que ele usa sem qualquer hesitação. É verdade que o universo de queixas e ressentimentos que Trump mobilizou estava lá muito para além das redes sociais, com os democratas a abandoná-lo há muito à sua sorte, mas Trump usa-os com muita mestria, quer para a sua glorificação pessoal, quer como “massa de manobra” para a sua agenda política, ela própria muito hostil aos seus apoiantes mais pobres, como acontece no sistema de saúde. Mas isso só terá efeitos a prazo.
A enorme pressão autocrática que Trump faz sobre os fundamentos da democracia americana tem vários eixos de actuação: um culto da personalidade que só tem paralelo nos ditadores da América Latina do passado (apenas Maduro se aproxima hoje de Trump e vice-versa); a submissão vergonhosa do Partido Republicano; a perseguição de todos que se opõe, umas vezes verbalmente, outras afastando-os dos seus cargos, como aconteceu ao director do FBI e a vários procuradores; a demonização dos media, transformados no “inimigo principal”; e a prossecução de uma agenda que se destina a tornar autoritário o sistema político.
Há que distinguir que o que ele pretende no plano da saúde, impostos, mesmo em muitos aspectos da “lei e da ordem” e da segurança, são políticas que podem ser detestáveis, mas são políticas que podem legitimamente ser implementadas se tiverem o apoio do Congresso e do Senado, ou estiverem no âmbito dos poderes presidenciais.
Já a tentativa em curso, a pretexto de uma pseudofraude eleitoral que teria dado entre dois e cinco milhões de votos a Hillary Clinton fazendo-o perder no voto popular, de tornar mais difícil o voto de minorias e dos mais pobres, é outra coisa. Como é outra coisa a politização sem rebuço que está a fazer do sistema judicial, atacando as decisões judiciais, a crescente falta de transparência na Casa Branca, desde conferências de imprensa sem áudio nem vídeo à falta de controlo público das entradas e saídas no edifício, ao despedimento do director do FBI que o investigava e à sua campanha, o ataque ao procurador especial, a negação da investigação sobre o envolvimento da Rússia nas eleições, que considera uma “caça às bruxas”, a utilização pessoal e favorecimento pelo Estado de grupos religiosos ultraconservadores, no limite da violação da separação do Estado e das confissões religiosas, o nepotismo familiar, dando elevados cargos a gente que não tem nenhuma experiência e conhecimento, e a substituição da comunicação social, mesmo a que é conservadora, por uns obscuros sites panfletários de extrema-direita ou de teorias da conspiração e pela adoração mútua com a Fox News, tudo isto associado ao favorecimento concreto desses órgãos marginais que nunca tiveram o estatuto de meios de comunicação.
E, depois, como estamos numa democracia, e a linguagem tem um valor democrático próprio, o tom dos seus “tweets” e intervenções, que são um constante apelo à violência verbal e física, a negação do “outro”, a chantagem, a paranóia do “nunca tal aconteceu”, “nunca isto foi conseguido”, o “melhor de sempre”, “milhões”, “biliões”, “triliões”, o “maluco do Joe”, o “louco Bernie”, a “crooked Hillary”, os ratings deste e daquele, menos o dele, o constante auto-elogio, encenado em comícios ou em reuniões do seu governo, num espectáculo nunca visto na América, ajudam a criar um caldo de cultura antidemocrático.
Trump fará tudo o que lhe permitirem que ele faça, sem qualquer outra consideração que não seja a sua preservação pessoal. Como já não é possível distinguir as duas coisas, a sua queda vai produzir muitos estilhaços porque ele fará tudo para que pareça ou seja um cataclismo. Trump é um tipo perigoso, muito perigoso.