Não lhe chamem memorialista

Não é um relator de memórias mas um amador do conhecimento da batalha humana travada na proximidade do seu tempo e dos seus lugares. É com estas palavras que a escritora Lídia Jorge, a viver em Boliqueime e há mais de uma década conhecedora do trabalho de investigação de Luís Guerreiro, o define.

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Há mais de dez anos que conheço Luís  Guerreiro e sempre achei extraordinário que um homem com formação em Engenharia tivesse deslocado o centro da sua actividade para a área da História, e aí tivesse permanecido fiel a uma paixão sem limites pela reconstituição do passado.

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Há mais de dez anos que conheço Luís  Guerreiro e sempre achei extraordinário que um homem com formação em Engenharia tivesse deslocado o centro da sua actividade para a área da História, e aí tivesse permanecido fiel a uma paixão sem limites pela reconstituição do passado.

Dotado de uma memória privilegiada e de uma curiosidade invulgar, ler, investigar, reconstituir, inscrever e dar conhecimento de factos marcantes e figuras de relevo que considera esquecidas, Luís Guerreiro escreveu incontáveis páginas, tem inspirado estudiosos, tem promovido debates, tem criado movimentações importantes na área do saber histórico.

O seu âmbito temporal  tem sido o dos dois últimos séculos, e o seu espaço privilegiado tem sido o Algarve, Loulé, sobretudo, a sua terra natal. Difícil avaliar quanto essa terra lhe deve, através de uma disciplina que abraçou por sentimento.

E, por isso mesmo, não vale a pena tentar inscrever Luís Guerreiro dentro das disciplinas da História e suas associadas taxonómicas. Luís Guerreiro tem a particular singularidade de se aproximar do historiador porque não cede à facilidade ou à suposição, emprestando na pesquisa que faz o rigor que provém das ciências duras nas quais se formou.

Mas ficaria apoucado se lhe chamassem memorialista. Luís Guerreiro é muito mais do que isso, porque não é propriamente um relator de memórias, é um amador do conhecimento da batalha humana travada na proximidade do seu tempo e dos seus lugares, amador no sentido nobre da palavra, e não no sentido da insuficiência consentida que o termo vulgarmente comporta. É um amador no sentido de quem ama quem foi, quem fez, quem disse, quem sonhou ou explicou e já não o testemunha nem explica. Um amador no sentido de tomar entre mãos traços precisos dos factos históricos, tentando inscrevê-los em quadros compreensíveis para a vida de hoje. Talvez por tudo isso Luís Guerreiro se tenha transformado num ficheiro vivo.

Sempre que lhe falei da linha férrea entre Lisboa e o Algarve, o Luís sabia de datas e circunstâncias, como se possuísse o dom de um registo espontâneo. O mesmo sobre os militares portugueses do Sul na Primeira Guerra Mundial, ou certas feministas, como Maria Veleda, ou sobre a colaboração salazarista a meia haste na Segunda Guerra, ou o despertar para o turismo no Algarve, ou a emigração dos anos 40, dos anos 50 e 60.  

Acresce que Luís Guerreiro é um leitor de Literatura e um conhecedor dos seus autores, o que lhe tem alargado a visão antropológica e humana com que aborda os temas, no plano da discurso histórico. Devo-lhe horas de incitação intelectual, de amizade, de exemplo pela causa da memória como fundamento da construção do futuro. Devo-lhe que, até agora, desde há dez anos, sempre me tenha incluído na sua área de afectos e que nos tenhamos tantas vezes cruzado em tarefas, a maior parte delas quixotescas, tarefas de tentar combater a linearidade do nosso novo mundo. Nesse sentido, enquanto ele mo consentir, sempre lhe hei-de chamar companheiro.

Lídia Jorge.

Boliqueime,  25 de Junho, 2017.