Marte, a nova utopia
A escolha é simples: vamos elevar os nossos problemas à escala planetária ou salvar o único planeta que ainda funciona?
Elon Musk (na foto) é o homem do momento. Em Portugal, todos anseiam pela chegada deste D. Sebastião montado no seu Tesla. Ao mesmo tempo, a sua SpaceX promete chegar a Marte até 2022. Será Marte uma nova utopia?
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Elon Musk (na foto) é o homem do momento. Em Portugal, todos anseiam pela chegada deste D. Sebastião montado no seu Tesla. Ao mesmo tempo, a sua SpaceX promete chegar a Marte até 2022. Será Marte uma nova utopia?
Embora a palavra utopia tenha surgido apenas em 1516 com a república insular de Thomas More, as sociedades ideais têm sido um sonho constante da Humanidade. Por exemplo, Platão imaginou uma Grécia governada por filósofos onde o conhecimento era a base da democracia. Obras mais recentes abordam também o tema da distopia, a transformação destes mundos perfeitos no seu oposto como 1984, de George Orwell, ou Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. Em ambos, as sociedades tornam-se disfuncionais porque removeram alguma componente humana fundamental. Muitos filmes recentes têm retratado variadas distopias — as político-sociais, como The Hunger Games ou tecnológicas como Transcendance.
Mas o que têm estas utopias, e suas distopias, a ver com a vida real? Tudo. Pensemos em alguns sistemas políticos do século XXI, mas também na tecnologia, quando exerce domínio sobre a Natureza. O homo sapiens sapiens, a subespécie que, na nossa taxonomia narcisística, “sabe que sabe” mudou radicalmente o modo como vive e conseguiu ser a única a duplicar a sua própria esperança de vida. E foi um ápice, lembrando que da agricultura à bomba atómica passaram cerca de 12 000 anos. No entanto, especialmente no passado recente, muitas das nossas fantásticas descobertas revelaram algum aspeto destrutivo. Essas descobertas, pertencentes ao projeto prometeico da modernidade, fazem lembrar o castigo de Prometeu quando roubou o fogo a Zeus para o dar aos humanos. Os exemplos são muitos; a revolução industrial trouxe o fim de trabalhos pesados, mas as fábricas tornaram-se novas prisões. A divisão do átomo trouxe a promessa da energia nuclear; cidades inteiras que se iluminam com alguns gramas de urânio! Aconteceu Chernobyl e a utopia ainda vive em Almaraz. Nos anos 60 acreditava-se que os computadores e a automação trariam as 20 horas de trabalho por semana. Ficaríamos com mais tempo para os amigos e ver as crianças crescer. Agora, não só passamos as mesmas horas no escritório como chegamos a casa e lá estão eles, mais computadores e trabalho, a jantar à nossa mesa, roubando não só o tempo como os filhos.
Na ida a Marte, o problema é a ansiedade. A exploração espacial é responsável por inúmeros avanços da engenharia à medicina e não deve parar. Mas o dinheiro não chega para tudo. Investir em Marte, para lá chegar mais cedo, significa desinvestir na observação da Terra, uma actividade que depende da construção de satélites para estudar os processos climáticos na Terra. A Agência Espacial Europeia tem investido, e bem, a maior fatia do seu orçamento nesta área. No entanto, com a chegada dos republicanos à Casa Branca talvez o rumo da NASA mude. Enquanto Ted Cruz insistia na utopia marciana, Charles Bolden, ex-diretor da agência espacial, teve de defender a importância de se estudar as alterações climáticas, “porque não iremos a lado nenhum se o Cabo Canaveral ficar debaixo de água”.
A ida a Marte vai acontecer e quem não gostaria de cá estar para ver? Mas sou contra a pressa que se tem. O nosso futuro vai para além da ciência, requer sabedoria e sensatez. Nas palavras de Bertrand Russell (em 1949!), “a menos que os homens ganhem tanta sabedoria como conhecimento, o aumento de conhecimento será um aumento de arrependimento”. O que teremos de comprometer para chegar a Marte nos próximos quinze anos? Nos instantes finais do vídeo Marte é florestado, o que deverá demorar não menos de um século. Que questões isto levanta? Irá isto acontecer ao mesmo tempo que a Terra se torna inabitável? Esta é também uma questão ética e compaixão. Quando “Stephen Hawking quer mandar a humanidade para o espaço, e já”, pergunte-se, a bem da sensatez, quem é que vai? Uns doutos ou selectos milionários enquanto o resto por cá fica, como Prometeu, condenado a robôs, alienígenas ou — bem mais provável — alterações climáticas? A escolha é simples: vamos elevar os nossos problemas à escala astronómica ou salvar o único planeta que ainda funciona?