Gente perdida por entre a poeira

Entre teatralidade e movimento coreografado, Olga Roriz quis afastar-se de alusões literais em Síndrome .

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Depois do mergulho num pesadelo espesso e negro — a cidade de Alepo devastada, o flagelo sírio, de Antes que Matem os Elefantes (2016) — Olga Roriz (Viana do Castelo, 1955) precisou de voltar ao ponto onde ficou, como se algo estivesse por dizer: o que resta, como se reage e o que se sente depois de uma calamidade? Para Síndrome o desafio era, pois, encontrar um universo diferenciado que, sem tempo ou lugar precisos, se ligasse ao da peça anterior. 

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Depois do mergulho num pesadelo espesso e negro — a cidade de Alepo devastada, o flagelo sírio, de Antes que Matem os Elefantes (2016) — Olga Roriz (Viana do Castelo, 1955) precisou de voltar ao ponto onde ficou, como se algo estivesse por dizer: o que resta, como se reage e o que se sente depois de uma calamidade? Para Síndrome o desafio era, pois, encontrar um universo diferenciado que, sem tempo ou lugar precisos, se ligasse ao da peça anterior. 

O cenário, agora mais despojado, diluiu referentes directos, embora retendo elementos da obra de 2016: um palco pós-cataclísmico, repleto de terra e pedras, papeis amarrotados a esvoaçar, figuras sonâmbulas a carregar destroços em baldes de plástico, num absurdo e maquinal impulso de reconstrução. E se na outra peça, a dança foi, em face do tema, abordada com certo pudor, Roriz confiou no seu saber-fazer e apostou aqui num registo sobretudo coreográfico e abstracto. Porventura iremos recordar sempre aqueles sete vultos a vaguear em cena num alvoroço de poeira.

Desde logo Síndrome envolve plateia e palco num poderoso enleio. Primeiro, o silvo de rajadas de vento e a luz pálida e rasante sobre o terreno pedregoso. Depois, a escuridão de breu, sucessivos clarões ténues a pulsar sobre a cena: distinguimos, à vez, um homem que caminha sem rumo com uma mala de couro desbotado, um vulto apavorado agachado ao canto, uma cadeira de alumínio vazia, o corpo enlameado do homem que agora jaz, inanimado, sob a velha mala.   

Neste chiaroscuro sépia, pensamos na pintura renascentista ou no desespero mudo de seres solitários de escuros sobretudos coçados, a vasculhar nos escombros, na quietude tensa, monocromática, das cidades após os bombardeamentos da Segunda Guerra Mundial. Sons de sinos distantes, silêncios cerrados, respirações ofegantes, a repetição quase opressiva da solene e trágica Sinfonia nº4 de Arvo Part, impregnam Síndrome, do início ao fim, numa angústia contida.  

A planura emocional densa, deliberada, é a passos rompida por arremedos de protesto: um casal tenta partilhar um abraço e uma gabardine, uma mulher insiste em beijar um homem desfalecido [recordamos o icónico dueto com Inês morta (Pedro e Inês, 2003)], em ímpetos amorosos deslocados, inconclusivos. Um personagem corre à toa e vocifera palavras incompreensíveis; um grupo de punho erguido enfrenta a plateia, num esboço de revolta. Um rapaz acossado emaranha-se nas pernas de outro, num terror convulsivo.

Entre teatralidade e movimento coreografado, Roriz quis afastar-se de alusões literais. Encontrar estados de alma, a experiência do humano perante a catástrofe. O intuito generalizante corre, quiçá, o risco de esbater o seu próprio fio dramatúrgico. O que, na cena final [três mulheres de longos cabelos encharcados e elegantes vestidos compridos, machados de terra e água, plasticamente agradáveis, no marcado estilo da coreógrafa que conhecemos desde As Troianas (1984)], se vem acentuar.

Acabam por ser as ocasiões mais claramente evocativas (os textos ditos são extremamente visuais), como o reviver meticuloso do interior da casa destruída onde antes se habitou, a luz sobre a face de Carla Ribeiro, a descrever avulsas cenas de rua, ou o lamento melancólico de sabor oriental da (única) canção que se escuta (Fields of sorrow, dos Kroke) a criar distensão emotiva e alguns dos momentos mais conseguidos.