Um museu íntimo para memórias em atropelo

Segundo momento de uma trilogia dedicada à memória, Moeder elege a figura materna para nos conduzir a um museu tão belo quanto desconcertante. Nas habituais encruzilhadas entre dança e teatro, os belgas Peeping Tom não perderam a mão e mostram-no no Festival de Almada.

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Começa com um estúdio de gravação dentro do qual decorre um velório. A luz vermelha acende-se de forma intermitente, sinalizando a sua utilização. Mas aquilo que o estúdio regista é, afinal, o silêncio. Moeder, segunda peça que a companhia belga Peeping Tom dedica a uma trilogia sobre a memória, começa por acentuar a ausência. Um corpo que se apaga para, logo a seguir, passar talvez a existir em exclusivo num emaranhado de recordações – absurdas, pouco lineares, desconexas, surreais, incompletas. Quando a luz do estúdio se extingue, é num museu que somos deixados, um lugar onde se acumulam memórias que podemos visitar quando nos lembrarmos que elas permanecem ali. Moeder, de certa forma, dá-nos uma (ou várias?) cabeça onde estarmos.

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Começa com um estúdio de gravação dentro do qual decorre um velório. A luz vermelha acende-se de forma intermitente, sinalizando a sua utilização. Mas aquilo que o estúdio regista é, afinal, o silêncio. Moeder, segunda peça que a companhia belga Peeping Tom dedica a uma trilogia sobre a memória, começa por acentuar a ausência. Um corpo que se apaga para, logo a seguir, passar talvez a existir em exclusivo num emaranhado de recordações – absurdas, pouco lineares, desconexas, surreais, incompletas. Quando a luz do estúdio se extingue, é num museu que somos deixados, um lugar onde se acumulam memórias que podemos visitar quando nos lembrarmos que elas permanecem ali. Moeder, de certa forma, dá-nos uma (ou várias?) cabeça onde estarmos.

E começa por uma ausência porque, na verdade, foi mais ou menos por uma ausência que tudo principiou. Quando Franck Chartier e Gabriela Carrizo se lançaram a mais uma trilogia em torno da família – antes tinha havido Le Jardin (2002), Le Salon (2004) e Le Sous-sol (2007) –, a saúde da mãe da fundadora dos Peeping Tom seguia num avançado processo de degradação. Após a morte da mãe, Gabriela pegou pela primeira vez nesta ideia primordial ao apresentar uma performance no Teatro Nacional de Bruxelas – 15 minutos num pequeno estúdio de gravação, em que o público podia comer bolachas e beber café enquanto esperava por algo que nunca acontecia. Era um espaço para se instalar o silêncio e o desconforto. Mais tarde, e com o trabalho da companhia a obrigar Franck e Gabriela a dividirem esforços na criação das duas primeiras etapas da nova trilogia, fazia sentido que a Franck coubesse Vader (Pai) e a Gabriela Moeder (Mãe). Não que a vida de Carrizo esteja pespegada no desfiar anárquico de memórias que compõe a peça em estreia em Portugal no Festival de Almada – 11 de Julho, Centro Cultural de Belém –, mas é impossível não olhar para aquele velório como uma ligação demasiado directa à sua vida particular.

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Oleg Degtiaro

Até porque o precioso tratamento do som ao vivo começa logo a seguir ao momento em que o caixão é tapado e levado para longe da vista, começa quando a cena é ocupada por um corpo feminino que se debate (tentando não submergir) com uma água que ouvimos e quase vemos. Esse som vem de uma pesquisa desencadeada por uma frase que a irmã de Gabriela, poetisa, terá proferido no funeral – “Minha mãe, primeiro som em mim”. Nada disto é explícito, mas o palco está habitado por fotos de família de actores e bailarinos, peças de vários puzzles de diferentes coordenadas familiares que permitem espreitar e, na verdade, muito pouco dão a ver. Ou melhor, pouco dão a ver das vidas de quem arrasta os pés a chapinhar numa água (que só ouvimos); de quem coloca as mãos suportando o peso de um bebé (que só adivinhamos) em avançado estado de gestação e dá um mortal frontal desamparado que rouba o sossego e a respiração ao público; de quem se afeiçoa perdidamente por uma máquina automática de café, objecto supremo de consolo em qualquer sala de espera; de quem olha para um quadro e se lembra da mãe a preparar a sopa na cozinha; de quem se queixa uma e outra vez do seu “trabalho de merda”. Aquilo que cada um vê é, na verdade, a sugestão de uma história que não é a sua – nem a de ninguém. É uma manta de retalhos, com a coerência de pensamentos em atropelo ou sonhos em roda-livre. Mas que, ainda assim, activa outros fragmentos de memórias individuais pertencentes a cada um.

Desde os primeiros passos que os Peeping Tom, no seu híbrido entre dança e teatro, se debruçam sobre um microscópio onde observam as relações familiares ou de pequenas comunidades. Cada duas pessoas são já uma história de inesgotável e fascinante complexidade. “Somos dois criadores que constituímos uma pequena família, temos uma filha, e ambos temos famílias que estão longe [sediados em Bruxelas, a lonjura varia entre França para ele e Argentina para ela]”, reflecte Gabriela Carrizo em conversa com o Ípsilon, depois de uma primeira noite de apresentação de Moeder no Théâtre National de Toulouse, terminada com a longa ovação de pé de uma plateia comovida. “Não decidimos conscientemente tratar desta temática nem achamos que tenhamos de compensar essa distância das nossas famílias, mas talvez isso esteja presente naquilo que fazemos.”

Se a morte da sua mãe é um dado objectivo e quase a piscar num brilhante néon nas nossas cabeças enquanto assistimos à cena inicial, Moeder constrói-se também sobre a necessidade de Gabriela “ganhar distância em relação à perspectiva sobre o tema”. “É uma obra de memória, de reconstrução da vida, de ciclos da vida e sem o pudor que muitas vezes se tem de entrar no casulo familiar e na maternidade.” Gabriela Carrizo fala em ciclos de vida e, de facto, não tarda para que a sala de gravações onde o funeral decorre reapareça como sala de partos ou como espaço onde é mantida uma incubadora que aprisiona um corpo mais envelhecido a cada nova aparição. Aqui, como em muitas outras paragens de Moeder, há uma comicidade que se roça indecentemente no absurdo, uma estranheza que se funde no terrorífico. Uma impossibilidade de a mãe estar com a sua filha que sugere uma carga dramática inicial; os planos do pai, segurança do museu, em ir festejar o sétimo aniversário junto à incubadora num cúmulo disparatado; e uma situação cada vez mais estapafúrdia à medida que o tempo avança.

“Há muitas coisas que se podem tirar dessa imagem da incubadora”, diz a directora artística dos Peeping Tom. “Desde a impossibilidade de a ver por razões médicas até, por outro lado, uma híper-protecção daquela menina”, separada das enfermidades e perversidades do mundo. “Muitas destas coisas são difíceis de explicar por palavras e mais facilmente traduzíveis por imagens que podem sugerir muitas interpretações. É um processo que se faz no estúdio, pouco a pouco, com os bailarinos e os actores, e em que eles propõem as suas histórias e o seu material. Eu proponho, eles propõem e depois fazemos uma construção e assumimos escolhas.”

Roubar ao esquecimento

No primeiro capítulo da trilogia da memória, Vader colocava a figura paternal num lar, num crescente desligamento do mundo, a desequilibrar-se numa queda para a decadência e, consequentemente, para a morte. Em Vader, a memória é uma memória a esvair-se rapidamente, a desaparecer sem deixar rasto, a esvaziar um corpo, deixando-o sem coordenadas e sem orientação possível – um saco de peles caídas e de músculos sem elasticidade, praticamente destituído de funções. A memória, ali, prende-se com a identidade e é um último e frágil fio que se prende à vida. Quando se rompe, pouco resta.

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Desde os primeiros passos que os Peeping Tom, no seu híbrido entre dança e teatro, se debruçam sobre um microscópio onde observam as relações familiares ou de pequenas comunidades: Moeder, 11 de Julho, Centro Cultural de Belém Oleg Degtiaro
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Herman Sorgeloos

Se em Vader a memória está por um fio, em Moeder funciona por justaposição de diferentes recordações e em que os ritmos, os espaços e o som “ajudam a mergulhar noutros espaços de memória, noutras matérias e noutros espaços mentais”. Esta forma persistente de exploração sonora, em que “não se sabe se é o som que provoca o movimento ou o contrário”, diz Gabriela Carrizo, foi trabalhada a partir do contacto com um sonoplasta – responsável por sons de estúdio acrescentados aos filmes para que soem mais “reais” – em que este partilhou com a companhia os seus materiais, o seu arsenal portátil e as suas possibilidades de criar ilustrações sonoras para as mais diversas situações. “Foi mais uma porta que pudemos abrir e que depois levou à ideia de ocuparmos o interior do estúdio de gravação, produzindo sons com a água, todo um elemento que está muito ligado à mãe.”

Da mesma forma que num filme, aqui, aplicada sobre cenas que são roubadas ao esquecimento e trazidas mesmo que episodicamente à memória, a intervenção sonora parece dizer-nos que também essa evocação de momentos passados obedece sempre a uma necessária encenação mental, a uma reconstituição que corrige os pormenores mais desgastados ou sumidos e substitui-os, adulterando ou apenas modificando cada lembrança para que não seja beliscada na sua perfeição.

Marie, guia daquela exposição muito particular em que os quadros nem sempre se deixam olhar sem responder, às tantas informa um dos visitantes que “pode tirar os óculos, não têm qualquer utilidade neste museu”. As gargalhadas que a piada provoca na sala em Toulouse, pelo inesperado, rapidamente são trocadas por sorrisos cúmplices, como se fosse aquela simples frase a desvendar, por fim, que este é um museu interior, íntimo, feito para virarmos o olhar para dentro. “Começamos sempre por escolher o espaço cénico”, esclarece Gabriela. “Fazemos uma maqueta, falamos do local onde e em que tempo a peça se vai passar, precisamos de um espaço para nos inspirarmos. Decidirmos onde se vai passar é muito importante para a dramaturgia da peça, porque o espaço é sempre uma outra personagem – mesmo que possa ser ambivalente e mudar a toda a hora.” Museu, estúdio de gravação e máquina de café são – nem vale a pena pensar em negá-lo – personagens por direito próprio nesta belíssima e desconcertante criação dos Peeping Tom.

Trabalhando repetidamente sobre esta escala de relações – “o casal, os microcosmos, os huis clos”, define Gabriela Carrizo –, Vader e Moeder serão sucedidos, em 2019, por Kinderen. Na peça derradeira da trilogia, são os filhos que perdem a referência dos pais, resultado de uma pesquisa em curso sobre a orfandade ou a recusa de uma relação filial envolvendo crianças. A perda e o pensamento sobre quem se é como filho/a com a perda dos pais, no entanto, está já presente em Moeder, não convocando apenas a memória mas revelando-se também um chão fértil para perguntar como se continua a ser filho de pais ausentes – o que se guarda, o que se carrega, o que se deita fora, o que prende ou liberta. As dimensões são tantas, nesta intrincada e quase arbitrária sequência de cenas, que Gabriela Carrizo prefere não analisar demasiado e deixar que cada cena seja alimentada por decisões pouco conscientes. Mas que, tal como na súbita e possante interpretação de Cry baby (canção popularizada por Janis Joplin) por uma mãe acabada de dar à luz, abre repetidas comportas emocionais. Há quem ria sonoramente, há quem chore silenciosamente, há quem se assuste sem medo de se denunciar. Em Moeder, não há muito onde nos escondermos.

O Ípsilon viajou a convite do Festival de Almada