Após a guerra na Síria, Olga Roriz chega a um lugar sem nome

Quando estreou Antes que Matem os Elefantes, Olga Roriz sabia que o assunto não se esgotara. Em Síndrome o apartamento de Alepo está destruído e a violência deu lugar a uma escuridão invernosa.

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No fim de Antes que Matem os Elefantes, havia um bailarino anichado no sofá, enquanto os outros deixavam o palco. Antes sequer da estreia da peça, em Julho de 2016, Olga Roriz sabia que aquela derradeira imagem sugeria o início de uma outra criação. Era como um corte numa narrativa por terminar. Pela segunda vez no seu percurso, e depois do solo Os Olhos de Gulay Cabbar, a coreógrafa voltava a trabalhar de uma forma assumida e claríssima a partir de um objecto real. Em Gulay Cabbar, fora a imagem de uma mulher afundando-se com o seu carro na sequência de inundações na Turquia, uma fortíssima sugestão de humanidade a ser sugada pela terra, de uma vida na sua mais absoluta fragilidade a ser engolida, mas também da maneira como as catástrofes são mediatizadas. Em Elefantes (chamemos-lhe assim pela simplificar), o cenário era o de um apartamento em Alepo, na Síria, onde quatro homens e três mulheres sem ligações claras tentavam sobreviver (física, mental e emocionalmente) à guerra que os tinha cercados.

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No fim de Antes que Matem os Elefantes, havia um bailarino anichado no sofá, enquanto os outros deixavam o palco. Antes sequer da estreia da peça, em Julho de 2016, Olga Roriz sabia que aquela derradeira imagem sugeria o início de uma outra criação. Era como um corte numa narrativa por terminar. Pela segunda vez no seu percurso, e depois do solo Os Olhos de Gulay Cabbar, a coreógrafa voltava a trabalhar de uma forma assumida e claríssima a partir de um objecto real. Em Gulay Cabbar, fora a imagem de uma mulher afundando-se com o seu carro na sequência de inundações na Turquia, uma fortíssima sugestão de humanidade a ser sugada pela terra, de uma vida na sua mais absoluta fragilidade a ser engolida, mas também da maneira como as catástrofes são mediatizadas. Em Elefantes (chamemos-lhe assim pela simplificar), o cenário era o de um apartamento em Alepo, na Síria, onde quatro homens e três mulheres sem ligações claras tentavam sobreviver (física, mental e emocionalmente) à guerra que os tinha cercados.

Elefantes não podia deixar de ser uma peça violenta. Não só porque o ambiente de guerra e desespero a isso conduzia, mas também porque seria trabalhada com o mesmo elenco que dera nova vida a Propriedade Privada, obra seminal no percurso de Olga Roriz, reabilitada para os palcos nos 20 anos da companhia e nos 40 de carreira da bailarina e coreógrafa. Não funcionando propriamente como continuação, a existência autónoma de Síndrome, em estreia esta sexta-feira no Teatro São Luiz, em Lisboa, onde fica até domingo (seguem-se apresentações em Aveiro a 8 de Julho, Bragança a 30 de Setembro, Famalicão a 28 de Outubro e Viana do Castelo a 3 e 4 de Novembro), tem lugar no mesmo espaço de Elefantes. Em vez de um apartamento, no entanto, agora nada resta, apenas terra, pó, uma cadeira avulsa. Enquanto Elefantes se dirigia para fora, se reclamava, combatia e dirigia ao exterior, Síndrome volta-se para dentro, acolhe uma maior abstracção, atravessa toda uma ideia de reconstrução, não apenas do edifício, mas das fundações de cada dia-a-dia.

No início de Síndrome, várias imagens vão surgindo aos olhos do público sempre que a luz as rouba à escuridão. “Essas imagens têm que ver com um dos trabalhos que dei aos bailarinos para fazerem no início”, explica a coreógrafa. “Costumo pedir-lhes imagens deste género, mas físicas, em acção. Desta vez pedi escritas. Até lhes dei o livro Short Movies, do Gonçalo M. Tavares, para perceberem aquilo que queria.” Alguns desses textos tomam forma nas cenas iniciais, enquanto outros são sussurrados pelas bailarinas, falando para si mesmas, rememorando provavelmente acontecimentos-chave nas suas existências.

A memória, na verdade, está também presente na proposta inicial de Olga Roriz para os bailarinos. Ao contrário dos intérpretes, “cuja primeira vontade era largar os Elefantes de todo”, a primeira preocupação da coreógrafa passou por não perder a criação anterior de vista. “Então pu-los a fazer resumos do espectáculo e isso foi muito interessante porque voltou-se a perceber, depois de uma série de representações ao longo de meses, onde é que eles estavam dentro daquele apartamento e quais as relações entre eles. Percebi que realmente há uma dramaturgia de cada um que, às vezes, tem pouco que ver com a dramaturgia do encenador ou director.”

Tentando que os bailarinos não se desligassem completamente das personagens que tinham assumido em Elefantes, Olga dirigiu esse primeiro conjunto de “resumos físicos” que lhes permitia “procurar aquele sítio, ao mesmo tempo que lhes passava a intenção de que queria uma reconstrução”. “Uma reconstrução interna, num sítio que não é um sítio preciso. Nos Elefantes estavam num sítio específico e real. Agora é como se estas pessoas estivessem em lugar nenhum, a recompor-se e a reconstruir-se. Antes de reconstruir casas, reconstruir-se internamente, aquilo de que todos precisamos depois de grandes catástrofes na nossa vida – sejam situações de guerra ou quaisquer outras.”

Arvo Pärt e Béla Tarr

Nas improvisações que se seguiram, e de onde Olga Roriz foi retirando vários dos pedaços que se juntam no alinhamento de Síndrome, começou a emergir um “lado invernoso e pesado”. Não resulta daqui, no entanto, uma peça fragmentada. Na verdade, habitando todos aquele mesmo local e uma mesma situação, há um traço contínuo que se mantém e que sai reforçado no seu peso pela presença constante da Sinfonia nº4 do compositor estónio Arvo Pärt, cuja dedicatória saúda os presos políticos do regime de Putin e se lê como uma crítica do Presidente russo. Olga Roriz elege esta música como a sua “companheira deste espectáculo, desde o início”, tendo juntado às referências essenciais para a construção de Síndrome o cinema singular do húngaro Béla Tarr. “Na altura andava a ver os filmes todos dele”, concretiza, “e havia qualquer coisa ali que tinha que ver com o que queria para esta peça: esta gente que não tem histórias. Até vou colocar no programa de sala a ideia do Béla Tarr não se interessar pelas histórias, mas pelas situações e pelas pessoas.”

Para Olga Roriz, em Síndrome assiste-se a “uma realidade sempre falsa ou ao fabricar de situações e algumas revelações”. Talvez por isso, nalguns momentos da coreografia pareça estarmos diante de falsos duetos, de danças que acontecem entre alguém e uma figura ausente. Apenas uma recordação ou um desejo de partilha que logo se desfazem como um castelo de areia. “Não são carnais, sensuais ou românticos”, concorda a criadora. “Uma das coisas interessantes no resumo que eles fizeram dos Elefantes foi eu perceber que um deles era mesmo um fantasma e para outros aquilo só acontecia na imaginação.” Sabendo que Síndrome fala muito para além da guerra e toca “num momento muito difícil em Portugal, em que há muitas pessoas perdidas, muito desemprego, muita falta de afectos, muita gente sozinha”, Olga deixou que tudo isso surgisse no palco e não recusou esses ganchos. Tal como não negou os momentos em que as bailarinas batem com o pé no chão e nada acontece.

Sem se dizer pessimista, Olga Roriz afirma que basta ler um pouco de História para achar que não há razões para grandes festejos. Daí que o ritual da lavagem do cabelo que em Elefantes era a imagem de uma tentativa desesperada de resgatar alguma ordem e alguma normalidade para um cenário de caos, apareça em Síndrome como uma água que deixou de limpar e purificar. A água, agora, vem para sujar e para cobrir a vergonha.