Uma viagem inesquecível (no Porto) sobre a vida
Galeria da Biodiversidade é inaugurada esta sexta-feira no Porto. É na Casa Andresen do Jardim Botânico e é o primeiro pólo do Museu de História Natural e Ciência da Universidade do Porto. Abre ao público no sábado. É obrigatório visitar.
Às vezes, como esta, entramos num espaço e saímos dele com a cabeça invadida por imagens e sensações. Um esqueleto de uma baleia suspenso num átrio, um cubo de vidro cheio de ovos de vários tamanhos e cores, outro cubo transparente com miniaturas de todas as raças de cães que há no mundo, cheiro de morango ou canela ou outra coisa qualquer, o som do coração de um rato, Charles Darwin sentado numa sala com dois coelhos ao colo em cima de uma almofada, Sophia de Melo Breyner numa secretária a escrever e que surge como uma lindíssima silhueta se a espreitarmos do átrio. E tantas, tantas outras. Estão todas dentro de uma casa que se chama Galeria da Biodiversidade, da Universidade do Porto (UP), e que é inaugurada esta sexta-feira.
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Às vezes, como esta, entramos num espaço e saímos dele com a cabeça invadida por imagens e sensações. Um esqueleto de uma baleia suspenso num átrio, um cubo de vidro cheio de ovos de vários tamanhos e cores, outro cubo transparente com miniaturas de todas as raças de cães que há no mundo, cheiro de morango ou canela ou outra coisa qualquer, o som do coração de um rato, Charles Darwin sentado numa sala com dois coelhos ao colo em cima de uma almofada, Sophia de Melo Breyner numa secretária a escrever e que surge como uma lindíssima silhueta se a espreitarmos do átrio. E tantas, tantas outras. Estão todas dentro de uma casa que se chama Galeria da Biodiversidade, da Universidade do Porto (UP), e que é inaugurada esta sexta-feira.
É o primeiro pólo do Museu de História Natural e da Ciência da UP que já terá custado dez milhões de euros e que abre ao público no sábado e esta sexta-feira será inaugurado por Marcelo Rebelo de Sousa. Mas não é um museu. Os museus não são assim. Da mistura única (no mundo?) de história, arte, literatura, biologia, tecnologia resultou esta inesquecível Galeria da Biodiversidade.
A experiência mora na Casa Andresen do Jardim Botânico do Porto, um palacete do século XIX, onde Sophia de Mello Breyner brincou. E onde hoje, arriscamos, se divertiria muito também. O museu foi aberto há 101 anos e inaugurado pelo então Presidente da República, Bernardino Machado. O livro original da cerimónia assinado estará lá hoje, ao lado de outro que Marcelo Rebelo de Sousa deverá assinar. Mas, agora, existe ali algo completamente diferente.
Nuno Ferrand, biólogo e coordenador do ambicioso projecto de criação do Museu de História Natural e da Ciência da UP, guiou o PÚBLICO numa vista ao espaço que durou uma hora e 24 minutos. Avisa, desde logo, que este pólo não quer competir com os célebres museus de história natural que existem em Paris ou Inglaterra. Vai começar a visita a “alguma coisa diferente” que quer captar e deslumbrar as pessoas pela beleza do lugar e que se apresenta como “uma viagem sobre a vida”. O (pouco) que aqui reproduzimos fica muito aquém do que apre(e)ndemos. Imagine que nos acompanha.
A conversa começa ainda fora da exposição, ao pé dos elevadores e do espaço que será em breve ocupado por um café. “A reabilitação da casa começou em 2010, depois tivemos a exposição de Darwin e outras e a casa fechou outra vez, em 2013, durante dois anos para a recuperação. A partir daí começámos a trabalhar nos conteúdos, num modelo que aproxima um museu de cariz universitário e um centro de Ciência Viva, o primeiro do Porto e o primeiro do país dedicado à biodiversidade. Esta é a primeira vez que vamos ter uma experiência de junção, uma parceria íntima.”
Subimos as escadas, em caracol, e entramos no átrio da casa onde foi colocado um enorme esqueleto de baleia suspenso no centro. É o início da ideia que une arte e ciência.
“Esta é a grande metáfora. É o início do projecto. A esta baleia chamamos ‘O desejo de Sophia’. Foi a baleia que a Sophia imaginou um dia aqui montada. No seu conto A Saga nas Histórias da Terra e do Mar ela imagina que o átrio – e descrevendo-o como desmedidamente grande – daria para armar o esqueleto de uma baleia, cujos ossos repousavam, abandonados, nos corredores da Faculdade de Ciências. A baleia estava lá de facto. Esta foi a baleia que ela viu numa visita que terá feito à Faculdade de Ciências (hoje é o edifício da reitoria). E nós trouxemo-la para aqui. E vemos a espectacularidade de uma baleia a surgir daquela sala e a encontrar o sítio onde Sophia sempre sonhou que mergulhasse.”
Quatro argumentos
Subimos mais umas escadas e chegamos à varanda que está por cima do átrio quadrado com janelas que deixam entrar a luz e o verde do jardim. Aqui, estão quatro vitrinas com os argumentos fundamentais para conservarmos a diversidade biológica: a beleza, a ética, a economia e a ciência. Todo o projecto nasce de uma colaboração entre Nuno Ferrand, Luís Mendonça, professor das Belas-Artes, e Jorge Wagensberg, um dos mais conhecidos museólogos mundiais da Universidade de Barcelona e que concebeu aquelas vitrinas.
Parámos em todas as vitrinas e experimentámos os desafios interactivos que estão entre elas. O primeiro argumento é a Beleza e são quase mil ovos suspensos. Chama-se “Diversidade dos ovos”.
“Fomos à procura de um objecto que representasse a beleza do mundo natural e o ovo é o melhor de todos, porque é a mais bela metáfora para a origem da vida. As pessoas ficam encantadas a olhar para isto. Estão organizados pelo tamanho (do mais pequeno ao maior), pela cor (dos mais claros para os mais escuros) e pela forma (esféricos e ovóides). Não é nada aleatório. Os espaços vazios e muito preenchidos mostram questões que existem na biologia, nós não sabemos porque é que há mais ovos pigmentados do que não pigmentados, por exemplo. Depois de ver a beleza do significado do ovo, podemos brincar.”
A caixa ao lado serve para isso mesmo: brincar. Desta vez, é uma caixa onde dançam dois ovos esféricos e dois ovos ovóides. Demonstra como são os ovóides que rebolam menos, ou seja, partem-se menos e têm mais hipóteses de sobreviver. Há mais caixas para brincar e que servem para miúdos e graúdos. Aliás, todos os espaços têm algo que interage com o visitante.
“Há uma cadeira onde nos sentamos para ouvir o bater coração de uma baleia (o maior mamífero na Terra com seis batidas por minuto), o coração de um rato (o mais pequeno mamífero do planeta, com um coração que bate mil vezes por minuto) e o nosso (que bate mais ou menos 70 vezes por minuto).”
Há uma mesa com funis articulados que deitam cheiros num jogo de poucos segundos para detectarmos se estamos a cheirar canela, morangos ou gengibre, entre outros, antes de surgir a imagem com a resposta. Há um quadro com imagens, ligadas umas às outras, com as obras de arte que se fizeram com cães. Há um local onde podemos tirar uma fotografia com a célebre técnica que Andy Warhol usou com Marilyn Monroe, numa recordação que pudemos imprimir, levar para casa e que está incluída no preço do bilhete. Uma caixa que guarda uma representação do mundo para onde espreitamos e podemos experimentar o mesmo olhar que uma vaca teria, ou uma abelha, ou um falcão, ou uma coruja, ou uma aranha, ou uma cobra, ou uma minhoca.
Na vitrina da ética temos miniaturas brancas que representam as 400 raças de cães que há no mundo.
“Repare que a cores só há uma coisa: o lobo. No centro de tudo está o lobo. Porque nós hoje sabemos pela genética que todos os cães têm como antepassado comum o lobo. Os cães são a nossa primeira domesticação, ainda não eramos sedentários. O argumento da ética aqui é que, como sabe, o lobo já se extinguiu em muitos países, já demos cabo dele, como desapareceram muitas milhares de espécies. Sem cães, a nossa vida seria muito diferente. Sabe quantos cães há no mundo? Mil milhões. Nós somos sete. Aqui está a importância da preservação de espécies. Qualquer espécie vale a pena ser preservada pelo simples facto de existir.”
Há mais duas vitrinas. Uma que guarda uma colecção de sementes que mudaram o mundo e sustentam a vida no planeta. É o argumento da Economia. Outra defende o argumento da Ciência com uma caixa com todos (mesmo todos) os comprimidos que pudemos encontrar à venda numa farmácia em Portugal.
Salas com histórias
Depois, a toda a volta desta varanda na casa, há salas ou quartos diferentes. Num canto, apresenta-se o conceito de Darwin da selecção sexual. Tem fêmeas atentas à luta entre dois veados machos e tem pavões, machos com incómodas e imponentes caudas e fêmeas mais discretas. Ao lado, há modelos em tamanho real de animais diversos.“Aqui vemos como a natureza só precisou de ‘inventar’ três coisas para nos movimentarmos no planeta: patas, barbatanas ou asas.”
Noutra há um imenso painel com três mil caracóis, de uma só espécie, onde não há um igual. “É aqui que podemos perceber cada um de nós é um acontecimento único e irrepetível.”
Depois, o espaço onde se exibe a arte da camuflagem é o único lugar onde vamos encontrar animais vivos. “Que nos lembra que todas as espécie têm (pelo menos) uma coisa em comum: queremos comer mas não ser comidos, queremos sobreviver. O homem é a espécie com maior sucesso neste desafio.”
Temos ainda a sala com a história de cinco mil anos da domesticação do milho, desde o mais ancestral ao actual, e que nos oferece a possibilidade de levar uma espiga para casa. Só tem de escolher: quer andino e colorido, milho-rei ou transgénico?
Na sala dos coelhos, encontramos Charles Darwin com um realismo desarmante. As mãos, os olhos, o cabelo. No colo, tem dois coelhos, um deles é o de Porto Santo. Quase ficamos à espera que, a qualquer momento, alguma coisa se mexa ali.
“Aqui temos o mais célebre senhor sentado. Estamos na sala dos mistérios dos mistérios da biologia, a especiação. Como é que as espécies se transformam umas nas outras? A grande obra de Darwin [a Origem das Espécies] resulta de dezenas de anos de reflexão sobre cinco anos de viagem à volta do mundo que foram, sobretudo, uma enorme colecção de argumentos. Mas um dos pontos fracos que ele sentia era a falta de uma prova, uma demonstração experimental. Darwin chegou a acreditar que o coelho de Porto Santo – introduzido na primeira viagem de exploração dos descobrimentos portugueses, de Bartolomeu Perestrelo e João Gonçalves Zarco – era a prova que precisava. Afinal, o coelho de Porto Santo não era um processo de especiação mas um processo acelerado de adaptação de uma espécie a um ambiente diferente. Hoje sabemos que a especiação é um processo que demora milhões de anos e não apenas 450 anos.”
Agora, descemos as escadas e chegamos à espécie humana. Constatamos que somos “tão diferentes e tão iguais” com imagens do projecto Pantone, concebido por Angélica Dass, que exibem uma amostra da extraordinária diversidade humana. E podemos “brincar” outra vez, numa câmara que nos mostra como seria o nosso rosto se tivéssemos nascido na Ásia ou África.
Há ainda um lugar onde podemos ouvir alguns dos mais conhecidos poemas de Sophia de Mello Breyner. Noutro espaço está uma homenagem a Paulo Alexandrino, investigador e fotógrafo da natureza, colega e amigo próximo de Nuno Ferrand e que morreu há pouco mais de um ano. E uma sala que recebe a exposição (temporária) de todo o espólio científico do célebre biólogo Desmond Morris, autor de O Macaco Nu ou O Zoo Humano, que foi entregue à UP. E há mais, muito mais.
Nuno Ferrand vai ter de repetir esta visita guiada esta sexta-feira para Marcelo Rebelo de Sousa em apenas uma hora. Uma tarefa que se adivinha difícil tendo em conta o que sabemos que Nuno Ferrand tem para contar e o que sabemos da curiosidade do Presidente da República. O público em geral pode entrar na Galeria da Biodiversidade no sábado. Na primeira semana, a entrada é gratuita. Está aberta a casa de todas as espécies. A casa que celebra a vida.