Okja, o filme Netflix que está a criar novas regras
O coreano realizador Bong Joon Ho descreve Okja, que esta quarta-feira fica disponível globalmente no serviço de streaming, como "um projecto de beleza". Obra com um objectivo ecológico, tem posto o meio a discutir a distribuição dos filmes.
Quando o Netflix chegou em Maio ao Festival de Cannes com Okja, de Bong Joon Ho (The Host - A Criatura, Mother - Uma Força Única) e The Meyerowitz Stories, de Noah Baumbach, filme com Dustin Hoffman, Adam Sandler e Ben Stiller, criou um precedente e sentiram-se os estremecimentos da comunidade cinematográfica por toda a Croisette. O festival precisava do destaque mediático que estes filmes iriam proporcionar, visto que Alien: Ressurection e Dunkirk não se concretizaram, mas como Cannes serve como rampa de lançamento para as salas de cinema francesas, os distribuidores locais revoltaram-se. Há um acordo legal que impede a disponibilização online, em França, dos filmes antes de um período de três anos depois de se terem estreado nas salas, mas o serviço de streaming Netflix insiste em disponibilizar os filmes simultaneamente online e nas salas. Ora, aquando da exibição em Cannes de Okja e The Meyerowitz Stories não havia sequer contrato para o seu lançamento nas salas francesas.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Quando o Netflix chegou em Maio ao Festival de Cannes com Okja, de Bong Joon Ho (The Host - A Criatura, Mother - Uma Força Única) e The Meyerowitz Stories, de Noah Baumbach, filme com Dustin Hoffman, Adam Sandler e Ben Stiller, criou um precedente e sentiram-se os estremecimentos da comunidade cinematográfica por toda a Croisette. O festival precisava do destaque mediático que estes filmes iriam proporcionar, visto que Alien: Ressurection e Dunkirk não se concretizaram, mas como Cannes serve como rampa de lançamento para as salas de cinema francesas, os distribuidores locais revoltaram-se. Há um acordo legal que impede a disponibilização online, em França, dos filmes antes de um período de três anos depois de se terem estreado nas salas, mas o serviço de streaming Netflix insiste em disponibilizar os filmes simultaneamente online e nas salas. Ora, aquando da exibição em Cannes de Okja e The Meyerowitz Stories não havia sequer contrato para o seu lançamento nas salas francesas.
Não foi só o meio que ficou escandalizado. Pedro Almodóvar, durante a conferência de imprensa do júri de Cannes, deu início ao protesto declarando que não iria votar num filme do Netflix. O espanhol, enquanto presidente do júri, tinha poder. No final, o Netflix acabou por ir para casa de mãos a abanar.
Okja foi mostrado dois dias depois da conferência do júri, e atraiu a pior parte da controvérsia em torno do Netflix. Mas houve uma longa conferência de imprensa com a habitualmente franca e sem rodeios Tilda Swinton, na qual a actriz exprimiu todas as suas opiniões esboçando um sorriso, e com o realizador Bong Joon Ho, que foi bastante diplomático e brincalhão. Swinton, que já pertenceu por duas vezes ao júri de Cannes e é co-produtora de Okja, para além de intérprete, reconheceu a importância do presidente poder dizer o que desejasse e reforçou que não andavam à procura de prémios. Disse ainda que, na realidade, o prémio era terem “o privilégio de projectar o filme naquele [gigantesco] ecrã, e que isso era parte da emoção de se levar um filme a Cannes”.
“Sejamos realistas, grande parte dos filmes mais bonitos e esotéricos não chegam sequer a ser exibidos no cinema e isso faz parte do processo evolutivo. O Netflix deu a oportunidade a Bong Joon Ho de transformar a sua visão em realidade”, disse a actriz.
Uns dias mais tarde durante as entrevistas com a imprensa, o actor de The Walking Dead, natural do Seul, Steven Yeun, proferiu palavras sábias: “Estamos no centro de algo que está a mudar. Há um lado bastante nostálgico do passado e um outro bastante excitado com o futuro. Mas, no fim, a inovação acaba sempre por ganhar”.
Ainda que as exibições de Okja e The Meyerowitz Stories tenham corrido como planeado, o director do festival Thierry Fremaux admitiu que no futuro os filmes só podem ser integrados na competição se tiverem garantido contrato de exibição em sala. Ted Sarandos, do Netflix, que está a criar uma reputação de trabalhar com grandes cineastas em filmes com orçamentos de nível médio que Hollywood tem ignorado, admitiu que poderia não voltar a Cannes. É tudo ainda um work in progress.
O destino de Okja
Com o que se passou em Cannes, imaginar-se-ia que o humor optimista de Bong teria desaparecido. Admitindo que fez Okja para ser exibido em cinemas, e sabendo que tinha a belíssima fotografia de Darius Khondji, contava com um elevado número de espectadores na Coreia. Contudo, as grandes cadeias de salas no seu país recusam-se a projectar o filme, alegando que isso iria perturbar o mercado local de distribuição. Por isso, será apenas exibido em 100 cinemas independentes.
“Estou a causar agitação onde quer que vá. E estas agitações estão a criar novas regras”, disse Bong numa conferência de imprensa, a 14 de Junho, em Seul. “O Festival Internacional de Cinema de Cannes está a debater como lidar com filmes do Netflix no futuro. Acho que este é o destino de Okja”.
“Também compreendo e respeito as decisões dos complexos de cinema locais. As cadeias querem pelo menos três semanas de exclusividade e o Netflix segue o seu princípio de exibir o seu conteúdo original em simultâneo na sua plataforma e no cinema. Não posso tirar esse direito de prioridade aos subscritores do Netflix que pagam para ver conteúdos originais como Okja”.
Tal como se encontra, esta co-produção internacional da Plan B Entertainment, de Brad Pitt, e de outras produtoras vai chegar aos espectadores de mais de 190 países através do Netflix e vai igualmente ter estreia limitada em França (em Paris, Nantes e Bordéus), nos Estados Unidos, Reino Unido e na Coreia do Sul no mesmo dia. Com um orçamento de mais de 44 milhões de euros (a Variety aponta para 52 milhões de euros), filmado em duas línguas e em três países (Coreia do Sul, EUA e Canadá) é o projecto mais ambicioso de Bong. O realizador insistiu em ter todo o controlo criativo para que fosse como imaginara a sua visão da relação entre um animal e uma rapariga adoráveis em oposição à desumana multinacional que os explora, e para que subsistisse também o seu humor pelo burlesco e pela caricatura, mais dirigido ao mercado asiático. Ficou feliz por ter uma parceria com o Netflix depois da má experiência com Harvey “Mãos de Tesoura” Weinstein em Expresso do Amanhã.
“Quando filmo na Coreia, tenho sempre o direito à montagem final e a situação com a Weinstein Company foi difícil, mas é assim que trabalham. O Netflix disse-me que podia fazer o que quisesse sem interferência. Os estúdios [cinematográficos] que tinham gostado do guião de Okja estavam preocupados com o quão perigoso parecia, dado a dimensão do orçamento. Não conseguíamos encontrar um meio-termo”.
Ironicamente, a montagem que a Weinstein Company fez de Expresso do Amanhã, 25 minutos mais curto, não obteve tão bons resultados com as audiências-teste nos Estados Unidos e teve, portanto, estreia limitada. Nunca chegou ao Reino Unido, por exemplo. Bong recusava-se a cometer o mesmo erro, ainda que tenha contratado a actriz de Expresso do Amanhã, Tilda Swinton, para um papel não muito diferente. Contratou também uma estrela de Hollywod, Jake Gyllenhaal, tal como tinha feito ao contratar o Capitão América, Chris Evans, em Expresso do Amanhã. A grande diferença entre os dois filmes é que, na história pós-apocalíptica, o sempre estimado Evans salva o dia quando um comboio atravessa a grande velocidade o planeta com os últimos habitantes humanos, enquanto o apresentador de programas de vida selvagem interpretado por Gyllenhaal, Dr.Johnny Wilcox, é um palhaço estridente e pouco simpático, daqueles que vemos em séries de comédia asiáticas. “Inspirei-me numa série de apresentadores de programas com animais que Bong me tinha mostrado”, relembra Gyllenhaal. “Depois de escolhermos os calções, não havia volta a dar, tínhamos de ser extravagantes”. A voz estridente também foi ideia de Bong.
"Já se parece mais com Trump?"
Uma mistura de filme de monstros, fábula sobre a chegada à idade adulta e uma sátira à indústria de alimentos geneticamente modificados, Okja tem como personagem principal Mija, protagonizada por An Seo Hyun, órfã de 14 anos que vive no montanhoso campo da Coreia do Sul com o avô. O seu único amigo é o fofo e adorável Okja, um dos 27 porcos gigantes criados pela Corporação Mirando. Quando a personagem de Swinton, a directora-geral da Corporação, Lucy Mirando, chama Okja de volta aos Estados Unidos, Mija vem em seu auxílio com um grupo de ambientalistas, desempenhados por Lily Collins, Paul Dano e Yeun, que podemos ouvir a falar em coreano.
Gyllenhaal é o ajudante de Swinton. Quanto à vilã extravagante, Bong explica como a actriz, que engendrara uma mistura de Thatcher e Hitler para o seu papel em Expresso do Amanhã, teve liberdade para criar Lucy Mirando. “Os nomes mais falados eram Trump e Ivanka”, hesita ele. E porque é que teve medo de dizer os nomes? “Tive tanto medo”, ri-se Bong. “Estavam a decorrer as eleições nos Estados Unidos e o nosso supervisor de pós-produção, Luca Borghese, um americano, estava a entrar em pânico em Seul. Chegou a dizer que ia emigrar para o Canadá, mas não o fez. Com a Tilda [Swinton] revimos algumas falas e tentámos dar mais uns toques políticos. Ela tentou várias vozes que se pareciam com a de Trump e perguntava sempre: ‘Já se parece mais com Trump?’”.
Gyllenhaal explica como já há muito queria trabalhar com Bong e tinha perguntado aos amigos se havia papel para ele em Okja. Também se sentia atraído pela história, parábola sobre a relação entre multinacionais e o ambiente. “O filme lida com a velha questão de capitalismo versus amor pelo ambiente e recursos naturais. Bong conseguiu capturar a beleza da natureza de forma extraordinária, especialmente através da relação entre aquela jovem rapariga, a criatura e as forças que os tentam separar. Todos quisemos fazer parte deste projecto por causa do amor pelos animais, pelo ambiente e por sabermos o quão importante é para nós”.
Okja, com o comportamento de um adorável Labrador, a criação CGI de Erik Jan De Boer, vencedor de um Óscar pelo tigre de A Vida de Pi, é a estrela do filme. O que torna mais difícil aceitar quando chega o seu fim. “Enquanto escrevia o argumento visitei um matadouro no Colorado e vi, em primeira mão, como um organismo vivo é transformado num produto”, recorda Bong. “Foi avassalador. O matadouro do filme está bastante realista, é próximo do que vi. No entanto, o recinto onde os porcos esperam a sua morte é um pouco mais distante da realidade. Quis dar a impressão de se tratar de um campo de refugiados, até mesmo no design da cerca. Quis mesmo que as pessoas sentissem o que é ser-se um animal naquela situação, todos em linha para serem mortos. Foi o que marcou mais. Talvez alguns já saibam o que lhes vai acontecer. É extremamente difícil explicar o que se sente ao ver uma imagem daquelas”.
Apesar do objectivo ecológico, Bong descreve Okja como um “projecto de beleza”. Inspirou-se nos filmes de animação do mestre japonês Hayao Miyazaki, como se pode ver pelas paisagens de Okja. “Cresci com Miyazaki a falar sobre a vida, a natureza e a relação com o capitalismo. Foi uma óptima influência”. Também se inspirou nos primeiros trabalhos de Steven Spielberg, especialmente em Encontros Imediatos do Terceiro Grau, E.T. - O Extra-Terrestre e O Tubarão. O filme é uma fusão de influências. “Não foi feito para ser um filme militante ou de propaganda. Não quero que todos se tornem vegetarianos depois de verem este filme. Mija gosta de cozido de frango. Ela é tal como nós. Nós temos um cão adorável em nossa casa, mas comemos bife às refeições”.
Tradução de Bárbara Melo