Portagens nas antigas SCUT agravaram a sinistralidade rodoviária
A introdução de portagens nas SCUT foi uma decisão largamente errada.
Hoje temos autoestradas ex-SCUTs vazias e estradas alternativas mais congestionadas que nunca. Mas porquê? Devemos estar preocupados? Neste artigo analisamos o papel das portagens.
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Hoje temos autoestradas ex-SCUTs vazias e estradas alternativas mais congestionadas que nunca. Mas porquê? Devemos estar preocupados? Neste artigo analisamos o papel das portagens.
As SCUTs surgiram em meados da década de 1990 como uma rede rodoviária projetada, construída, operada e mantida por parcerias público-privadas. As concessionárias privadas receberiam receitas de “portagens virtuais”, transferências do Orçamento do Estado baseadas no tráfego que por lá passasse. Como sugere o acrónimo (SCUT), o uso destas vias rápidas não teria custo direto para os utilizadores.
Um dos argumentos apresentados para a construção destas novas autoestradas foi a necessidade de desviar tráfego de estradas alternativas antigas e deterioradas que colocavam em perigo a segurança rodoviária. Novas estradas incorporariam técnicas de construção mais avançadas, o que tornaria a viagem mais rápida e mais segura. Apesar do aumento esperado do tráfego induzido pela disponibilidade das novas autoestradas e pela maior velocidade praticada, o aumento do tráfego automóvel desviado de rotas alternativas levaria a uma circulação mais segura. De facto, para as SCUTs para as quais as análises formais de custo-benefício são de domínio público - Beira Interior, Interior Norte, Beiras Litoral e Alta, e Grande Porto - os benefícios da melhoria da segurança rodoviária representavam respectivamente 19,7%, 37,6%, 16,9%, e 33,2% dos benefícios totais. Os benefícios em termos de maior segurança rodoviária tiveram assim um papel fulcral na motivação e decisão de construir estas mesmas autoestradas.
Na sequência da crise de 2010, o Governo português foi forçado a intensificar os seus esforços de consolidação das finanças públicas e a ideia de converter portagens virtuais em portagens reais tornou-se, neste contexto, politicamente conveniente. As portagens foram introduzidas em duas vagas sucessivas, primeiro no final de 2010 e, depois, no final de 2011. A partir de 2012, as sete autoestradas que dantes eram SCUTs deixaram de o ser. Contudo, nesta decisão foram ignorados os efeitos de introduzir portagens nas SCUTs tanto sobre o número de viaturas a circular nestas autoestradas, como sobre o posterior desvio de tráfego para estradas alternativas, mais velhas e menos seguras.
Num dos meus trabalhos recentes de investigação, analiso com os meus colaboradores os efeitos na segurança rodoviária da introdução de portagens nas ex-SCUT. Comparamos os padrões de tráfego e de sinistralidade automóvel entre 2008 e 2014 nos 59 municípios que foram afectados pela introdução das portagens com os demais 219 municípios do continente. Esta análise tem a vantagem de permitir isolar o efeito da introdução das portagens de todas as outras vicissitudes, a começar pelos efeitos do abrandamento económico durante a crise, que também afectaram os diferentes municípios.
As nossas conclusões podem ser resumidas de forma simples. Primeiro, houve um aumento significativo do número total de acidentes, 4%, e de vítimas, 3%, nos municípios cruzados pelas SCUT devido à introdução de portagens. Segundo, este aumento no número de acidentes e de vítimas reflecte simultaneamente uma redução significativa da incidência da sinistralidade nas autoestradas, incluindo nas SCUT, nesses municípios e um aumento significativo na incidência nas demais estradas. Terceiro, o agravamento da sinistralidade está ligado a um aumento no número de feridos ligeiros, 3,7%, já que não encontramos evidência de as portagens terem afectado quer o número de feridos graves quer o número de vítimas mortais. Estimamos que a introdução de portagens nas ex-SCUT tenha aumentado o número de vítimas ligeiras em 1193 em cada ano.
Importa contabilizar também os custos económicos e sociais destes efeitos adversos da introdução de portagens nas SCUT na segurança rodoviária. O custo médio económico e social das vítimas de ferimentos rodoviários ligeiros inclui o valor da perda de produção, os custos administrativos das seguradoras, os custos das instituições de segurança rodoviária, os custos legais, os custos de tratamento hospitalar, os custos de perda de propriedade, e ainda outros custos sociais não monetários. Para Portugal, estima-se que este custo total ronde os 26 000 euros por vítima. Como tal, um aumento de 1193 vítimas com ferimentos ligeiros em cada ano traduz-se numa perda anual de cerca de 31,2 milhões de euros.
Para colocar as coisas em uma perspectiva, as receitas das portagens nas SCUT, excluindo IVA, ascenderam em média a 148 milhões de euros por ano entre 2012 e 2014. Assim sendo, o custo económico e social dos ferimentos ligeiros induzidos pela introdução das portagens nas SCUT corresponde a cerca de 21% das receitas de portagens cobradas nesse período.
Levanta-se, portanto, a questão se valeu a pena introduzir as portagens nas SCUT. Os números aqui apresentados incluem exclusivamente os custos económicos e sociais associados ao aumento da sinistralidade devido à introdução das portagens. Não incluem os custos adicionais do tempo de deslocamento, do desgaste dos veículos, ou mesmo dos efeitos ambientais que resultam do desvio do tráfego das SCUT para as estradas alternativas. Ainda assim, são uma importante peça no argumento que a introdução de portagens nas SCUT foi uma decisão largamente errada. Há evidência de que os custos induzidos pela introdução das portagens são significativos e que não deveriam ter sido ignorados pelo poder político.
Considerando que as receitas das portagens sobre as ex-SCUT cobrem actualmente apenas cerca de 30% dos seus compromissos públicos brutos, considerando que a nova conjuntura orçamental que o país vive permitiria a sua reversão a SCUT, e considerando ainda que uma redução das portagens não só preencheria as vias rápidas como ainda reduziria o número de vítimas por ferimentos ligeiros, é caso para dizer: “Do que está à espera o Governo para agir?”.
Nota: Este artigo está baseado nos resultados do projecto “For Whom the Bell Tolls: Road Safety Effects of Tolls on Uncongested SCUT Highways in Portugal” desenvolvido em co-autoria com Rui Marvão Pereira do College of William and Mary e João Pereira dos Santos da Universidade Nova de Lisboa.
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